Deucalião e Pirra, Giovanni Maria Bottalla, 1635
O Dilúvio
Grego
No
inicio, a humanidade vivia como deuses – tranquilos e em paz. O
trabalho não existia, porque a Terra, espontaneamente, produzia
tudo. Os primeiros seres humanos jamais envelheciam e, após deixarem
esta vida, recebiam o privilégio de se tornarem intermediários
entre os deuses e os mortais, encarregados de vigiarem a justiça dos
governantes. Quando Zeus decidiu que manteria este grupo limitado a
Trinta Mil Imortais Invisíveis, uma parte da humanidade negou-se a
prestar-lhe culto. Embora contrariados, os deuses permitiram que
recebessem a honra de tornarem-se também intermediários entre o Céu
e a Terra mas agindo de baixo para cima, na outra vida. Os que
sobraram, foram irredutíveis. Entregaram-se ao império da força e
da violência. Por isto foram chamados de Filhos da Lança,
completamente indiferentes à justiça. Instalou-se a trapaça e a
dissimulação. Todos guerreando contra todos, pilhando, conspirando,
fraudando. Em nome do maldito desejo de possuir, árvores foram
cortadas das encostas por puro divertimento. A terra foi demarcada,
sugada toda a sua vitalidade, na busca insana de metais preciosos.
Mãos ensanguentadas brandiram armas mortíferas na direção do céu,
ameaçando até as estrelas. A Terra transformou-se um vale de sangue
e lágrimas.
Zeus
convocou a assembleia dos deuses para discutirem o futuro da
humanidade. Atená interviu, solicitando que fosse dada mais uma
oportunidade aos seres humanos. Zeus decidiu andar pelo mundo para
ver se encontrava alguém justo, alguém que não tivesse sucumbido à
loucura e ao descomedimento. Ao chegar na Arcádia, revelou-se e
todos zombaram dele. Dirigiu-se ao palácio do tirano e foi recebido
durante um banquete onde era servido carne humana. Indignado, Zeus os
amaldiçoou e, decidiu ali mesmo afogar o resto da humanidade num
grande dilúvio. Aprisionou o vento norte e baniu as nuvens. Permitiu
que o vento sul zunisse suas asas gotejantes e farfalhasse seus véus
negros como breu. A fúria incontrolável de Zeus recebeu ajuda de
Netuno que, chamou todos os seus rios e lhes disse que abrissem suas
comportas e decantassem o aguaceiro e as águas correram livres. Rios
caudalosos cobriram as grandes planícies. Tudo foi varrido: flores,
grão, gado, humanos, casas, cidades, bosques e os altares com seus
fogos sagrados. Se algo insistia em se manter de pé, as águas
engolfavam. Tudo virou um mar, um mar sem linha de praia. A inundação
tomou todas as coisas, ou quase todas, e aquelas cuja água, por
algum motivo poupou, acabaram conquistadas lentamente pela inanição.
Apenas os
picos gêmeos do Monte Parnasso mantiveram-se acima das águas. E
ali, apenas um homem e uma mulher conseguiram chegar. Deucalião e
Pirra remaram sete dias e sete noites num barco construído por
Prometeu, o eterno protetor da humanidade. Quando Zeus viu que o
mundo era um grande oceano, que somente uma mulher restava de todas
aquelas milhares delas, e só um homem entre milhares de outros,
ambos inocentes, despediu as nuvens, liberou o vento norte e mostrou
a terra ao céu e o céu à terra. Netuno baixou seu tridente e
acalmou as ondas. E o mar novamente pode ver a praia, os rios
entraram nos seus leitos e a inundação cedeu. Colinas ficaram à
vista, árvores despontaram com suas folhas ainda barrentas. O mundo
voltou à vida.
Deucalião,
olhou em volta, vazio, em silêncio. As lágrimas escorreram-lhe
quando disse à sua mulher: - Minha consorte, prima e parceira...
Neste caos, olha: de toda terra, apenas nós dois! Pelo menos não
estamos sozinhos, temos um ao outro. E choraram, choraram juntos.
E pediram ajuda: - Ó Têmis, se a fúria dos deuses sempre ouve
uma prece correta, lhe imploramos: diga-nos de que maneira nossa
ruína e desolação pode ser reparada. Ajude-nos, tu, a mais gentil
das deusas, a encontrar um caminho alternativo. E a deusa guardiã
dos juramentos humanos, falou-lhes: - Arranquem suas túnicas,
cubram a cabeça, e joguem os ossos de vossa mãe atrás de vocês.
Pirra, com os lábios trêmulos, disse que não faria aquilo, que era
uma impiedade. Mas a voz continuou repetindo o mesmo conselho por
horas a fio. Por fim, eles entenderam que a terra era a mãe e as
pedras seus ossos. E a cada pedra jogada por Deucalião, nasceu um
homem. A cada pedra jogada por Pirra nasceu uma mulher. E a terra
pode novamente ser repovoada.
Belíssima passagem da mitologia, muito próxima à narrativa bíblica do dilúvio.
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