Morning Sun, Edward Hopper, 1952
Não faço
ideia de como vim parar aqui. Acordei e estava aqui, deitado sobre
palhas de coqueiro, vestido apenas do que deve ter sido uma calça.
Digo coqueiro e calça assim assim, sem qualquer convicção, não
sei exatamente o que estas palavras significam. Mas, por uma espécie
de memória que presumo tenha sido um passado (e que ocorre-me em
lampejos), parece que sei algo de coisas que nem imagino. Talvez
tenha vivido outra vida. Uma vida diferente desta que penso
agora. Bruuuu! Assusta-me mergulhar nesta região de vazios e
labirintos intermináveis: o lugar das coisas que não sei. Desejo
apenas alguma familiaridade. Incomoda-me ser estranho.
Olho-me.
Cabelo: emaranhado de fios adornados com gravetos e restos de folhas;
pele: ressecada, complexo de manchas pálidas; unhas: compridas –
devo roê-las para que não me firam; pés: gretados, espalmam-se
chapados e desengonçados sobre a areia, restos de vegetação e
pedregulhos... Difícil acostumar. Tantas causas e efeitos,
pensamentos em redemunho, embaraços desagradáveis. Se ao menos
conseguisse relacioná-los. O grande problema é que ainda não
consegui resposta satisfatória que explique, de modo claro e
definitivo, dois fatos: primeiro, por que estou aqui e não em outro
lugar qualquer e, segundo, sou o que penso que sou ou outro que
desconheço?
“De
modo claro e definitivo”! Deixo-me seduzir. Para prosseguir nessa
jornada, incessante ir e vir sempre aqui, mesmo lugar. As ondas do
mar me refletem? Caminhar em círculos, não quero. Já experimentei
e fiquei tonto. Em linha reta, algumas impossibilidades. Talvez
melhor seja andar em ziguezague, vez por outra descrevendo uma
curva. Parece-me mais elegante. Que coisa, não? Sozinho, ignorante
de mim e do mundo, preocupo-me com elegância. Tudo isto é
esquisito. Só não sei dizer como.
Ainda não
me atrevi conhecer este lugar. Nem imagino qual deva ser minha reação
se houver outros neste espaço. Não desejo conhecê-los. Temo
conhecê-los. Talvez possuam uma cultura desenvolvida, talvez sejam
sofisticados demais e acabem por rejeitar-me; talvez sejam bárbaros
com rituais medonhos, que me façam passar por constrangimentos
violentos ou acabem por devorar-me nalgum festim diabólico; ou
talvez sejam absolutamente indiferentes a tudo e todos e aí não
valerá o esforço de aproximação. O fato é que não tenho vontade
de sair desta nesga de praia. Estou bem aqui. Temo perder-me, isto é,
perder-me mais ainda. Sei lá, perder-me irremediavelmente. Perder
esta única companhia que sou para mim mesmo. O que não é grande
coisa. Divergimos o tempo todo. Eu e eu, comigo mesmo, qual velhos
conhecidos. Estranhos conhecidos.
Caminhar
por aí... Sobrevivo com pouco: raízes, insetos e alguns
peixes e moluscos que consigo apanhar na maré baixa. Divirto-me
lambendo das folhas o orvalho acumulado durante a madrugada. Na maré
alta, engancho-me nos galhos médios dalguma árvore e passo o tempo
rindo e praguejando com as formigas. Esta ausência é um desgosto.
Devo comunicar-me, com o exterior. Existe algo além deste mar?
Desconforta-me a ideia de ser este o único lugar do mundo. Se todo o
mundo resumir-se nesta que penso ser uma ilha, estou mesmo ferrado.
Para sempre, com este eu tirânico.
Dói-me
pensar que este oceano não tem fim. Conforta-me imaginar que exista
além. Outros além. Diferentes. Passo o tempo, configurando-os.
Ocupo-me. Deste infinito tormento. Todas as alternativas. Possíveis
e impossíveis. Povoar o vazio. Sufoca-me passar as horas a olhar o
nada, trocando meia dúzias de palavras comigo mesmo. Tenho que
colocar-me em marcha, diminuir esta distância. Talvez descubra
coisas que me façam aceitar o fato de que este é, sempre foi e
será, o meu lugar, o único lugar onde alguém como eu possa
existir. E nada de tudo ou nada, um pouco de cada vez. O quebra
cabeça continua na parede, acho que perdi uma das suas mil peças.
Está por aí, em algum lugar. Vou fazer de conta que esqueci.
Bom dia!
ResponderExcluirAdorei conhecer seu blog. E te confesso que me emocionei ar ler este texto.
Grande abraço
se cuida
Belo texto! O homem e a ilha que ele pensa ser, contra todo um oceano aí fora.
ResponderExcluirÓtimo texto, nem precisaria dizer, mas como sou eu essa menina que não quer perder uma oportunidade.
ResponderExcluirNo meu oceano será que perdi você? Não mais nos comunicamos...Saudades do amigo, sempre
Iris