Noah Scalin, Human Skull Puzzle
Já
tentei de tudo, doutor. Frequentei até terreiro e nada. Perdi a
coragem. Perdi vírgula, como posso ter perdido algo que nunca tive?
Pois é, nasci assim, totalmente covarde. Numa família de machos.
Estranho, não? Olha só: meu pai
pegava touro pelos chifres; meus tios matavam a cobra e mostravam o
pau; e, enquanto minha mãe e minhas irmãs faziam das tripas
coração, meus irmãos vangloriavam-se de darem um boi para não
entrarem numa briga e uma boiada para permanecerem nela. Como posso
ter seguido carreira diversa, doutor?
Minha
pergunta é: como se ganha coragem? Que ingredientes poderia misturar
para obter uma, digamos, porção de coragem? Um amigo meu disse que
comprou coragem numa loja de antiquidades, por um precinho bem
camarada. Deve ter funcionado, o encontrei outro dia defendendo
a ordem em praça pública. Ordem de quem, perguntei. E ele, com os
olhos baços, disse que não precisava saber, que ordem era ordem,
não importava de onde viesse, que o dever de todos era obedecer e aí
daqueles que ousassem desafiá-la. Manda quem pode, obedece quem tem
juízo, saiu resmungando, como que repetindo um mantra. Porçãozinha
poderosa, esta!
Será que
cumprir ordens é ser corajoso, doutor? Vivo cumprindo ordens e não
sinto que esta atitude acrescente uma gota de coragem ao meu
currículum. Aliás, isto nada tem a ver com coragem, tem a ver com
necessidade. Se não cumprir ordens, não terei o que colocar à
mesa, o que vestir, onde morar. Se bem que estas necessidades não
sejam satisfeitas a contento, como eu gostaria que fossem mas, dá
pro gasto: não passo fome, tenho três ou quatro camisetas e um par
de tênis que comprei a prestação. Contrato foi feito pra se
cumprir, até segunda ordem, certo?
Outro dia
li que ter coragem é uma habilidade. Habilidade de confrontar o
medo, a dor, o perigo, a incerteza ou a intimidação. Quer dizer, a
gente adquire. Aprende a ser corajoso. “Pessoa corajosa é
aquela que, mesmo com medo, faz o que tem que fazer”, sei lá
quem disse isto. Mas nesta categoria muitos canalhas podem e serão
considerados corajosos. Veja por exemplo do sujeito que, por
principio, aceita que haja apenas uma cor, uma única cor como fonte de
bem, belo e verdade. Ele será considerado por seus pariceiros,
corajoso por defendê-la em quaisquer circunstâncias mas, um canalha
por todos os adeptos das outras cores. Mas como para aqueles o que
importa é a opinião dos amigos, levam suas vidas como se fossem
gigantes, bravos indônitos.
Lá em
casa? Bem, assisti dois tipos de coragem: do meu pai e meus irmãos,
uma coragem que bem podia ser chamada de arrogante, nada reflexiva,
puramente formal, um adorno – por dentro tremiam ao som da palavra
de um mais forte. O mais forte sendo o que tem mais
dinheiro. Afinal, contra o dinheiro não há forte que resista; e a
coragem da minha mãe e minhas irmãs: uma coragem do tipo
sobrevivente, dolorida, resistente às adversidades em nome de um céu
prometido nas intermináveis missas, novenas e pagação de promessas
a todos os santos e santas registrados nos missais. De longe, a mais
dificil de aguentar. Porque pior, dificil de desdizer. Mamãe
repetia, a cada desfeita: “Vai passar, meu filho, vai passar... creia”.
Embora sua resignação chegasse a inspirar confiança, logo ruía
quando defendia meu pai. Nunca a vi contrariar um mando dele. Talvez
o fizesse no silêncio dos lençóis, não sei. Só sei que não
conseguiu impedir que ele fosse assassinado, a doze facadas, num beco
ermo, a troco de nada; nem a meus irmãos: um, acabou na mão de um
polícia que não achou graça da sua resposta a uma abordagem num
bordel de quinta; o outro repousa numa cova indigente despossuído do
lema predileto: se sólido como, se líquido bebo. Seria a
vingança um ato de coragem? Pois é, sobreviver só não basta. A
coragem sobrevivente é irracional. É apenas luta por comida e pelo
direito de fazer merda.
Sabe,
doutor, vamos esquecer este negócio de coragem, vamos tentar outra
vertente? Que tal me ajudar a obter algum domínio sobre as minhas
ações? Ainda continuo com medo do escuro, doutor. Cago-me todo. No
escuro. O senhor não acha que preciso aprender a combater nas
trevas? Se até um cego vê que é preciso usar a razão, porque
continuo a guiar-me pelo prazer?
É aquela história de que, às vezes, o medo faz borrar pernas abaixo e, contra o qual, nem meizinhas, nem remédio de doutor. Muito bom!
ResponderExcluirContinua muito bom nesta tarefa, escreve cada dia melhor e mais inteligente.
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