Cartum, Duke
Quando
cheguei ela estava com aquela cara de quem comeu e não gostou.
Atirou o controle remoto sobre a mesinha de centro. O bichinho quicou
duas vezes e foi parar debaixo da estante qual um cachorrinho
assustado. Depois, bufou toda aquela raiva em muxoxos e resmungos
audíveis no final da rua. Não perguntei o que havia, porque eu
sabia o que havia. Aqueles modos eram por demais conhecidos. E não
seria hoje que eu iria jogar algum combustível naquela fogueira.
Aliás, há tempos tinha decidido que houvesse o que houvesse, sempre
que houvesse, não discutiria, esperaria a poeira baixar e se ela,
após alguns dias de cara amarrada, decidisse falar, ouviria tudo até
o fim meneando a cabeça num forte gesto de concordância. Vinha
funcionando... até hoje.
Hoje ela
decidiu impedir que eu abrisse a geladeira e sondasse as reservas.
Prostrou-se impávida entre eu a minha expectativa. Não recuei e a
encarei com o semblante plácido. Pra que fiz isto! Avançou com as
unhas desembainhadas e só não abriu uma avenida na minha cara por
que, lembrando os ensinamentos do meu mestre de Tai Chi, desloquei
meu ponto de equilíbrio alguns milímetros para a esquerda, o
suficiente para que ela, qual uma montanha, desabasse sobre o piso de
pinho comprado em doze prestações. Mas não caiu. O que pensam que
sou, um monstro? Não permiti que ela chegasse ao chão. Aparei-a a
cerca de meio metro e segurei a barra. Mas não a levantei de
imediato. Deixei que sentisse o peso da gravidade, numa tentativa de
que tomasse consciência do precipício em que se jogara.
Mais uma
vez errei. Devia já estar acostumado. Mas, não, sempre acredito na
possibilidade de mudança. Sempre penso que a experiência é capaz
de nos fazer enxergar a verdade. De nos fazer compreender que aquilo
que estamos prestes a fazer pode ser feito de outra maneira. Sempre
aposto no contar até dez. Analisar todas as possibilidades antes de
partir, antes de jogar a pedra, antes de julgar, de decretar a
sentença, de ligar a chave, de apertar o botão, de dar aquele passo
que nos atolará para sempre no reino das desculpas.
Não
mudou quando a ergui. Chutou a almofada displicente, a mesma onde
estivemos recostados noite passada entre dengos e afagos. Ela esquece
fácil. O poço sem fundo onde às vezes se ancora tem a propriedade
de apagar toda lembrança, de projetar sombras sobre o nosso futuro
incerto. Mas não fiz o que ela esperava. Não entrei na cozinha.
Fiquei parado no umbral, à espera do seu próximo movimento.
Agachada, tateando os confins da estante, parecia outra. Aquela outra
que eu temia e vinha buscando de todo jeito evitar. Aquela outra de
cotovelo afiado, capaz de me fazer calar ao menor sinal de
discordância ou de desatenção diante da sua loquacidade. Novamente
na posse do controle, sentou-se costumeiramente do lado esquerdo do
sofá para assistir ao canal de documentários. Senti que devia
acompanhá-la. Manso, como um colegial à espera de aprovação,
mostrei interesse no vídeo.
- Esta
hora não tem nada que preste! E começou a zapear através dos
120 canais disponíveis. Estancou numa pregação. Não contestei.
Quem era eu para contestar? Estava apelando para o televangelista
numa clara indicação de que devia entregar-me, render-me ao poder
curativo do espírito santo, confessar todos os meus pecados e
alcançar a salvação. Fiz-me de desentendido. Ou melhor, ignorei
aquela estratégia. Não tinha feito nada de errado, estava com a
consciência tranquila. Ela sim, é que estava extrapolando,
exorbitando, indo além do razoável. Não podia ceder. Mesmo que
custasse o nosso casamento. E preparei-me para o pior. Mas não foi
preciso muito. Virou-se para mim, fez cara de
te-perdoo-mas-que-isto-não-se-repita e lembrou-me do nosso mais
sagrado compromisso: estar disponível para o outro, sempre, a
qualquer hora, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias. E
acrescentou, com um divertido toque de malícia: - Posso saber
porque o senhor não atendeu ao celular? Como posso confiar no
senhor se não sou capaz de saber onde o senhor está?
Ah, as mulheres! Sempre elas com suas mais profundas desconfiança dos homens. Belo conto!
ResponderExcluirMuito bom!!
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