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O Companheiro de Morte, continuação
"Na manhã
seguinte, no templo, Sali quis saber do sumo sacerdote se havia razão
para condenar-lhe o julgamento. O ancião não tinha resposta. Alegou
que precisava ouvir mais uma vez as histórias de Farlinas, precisava
se preparar melhor e que, naquela noite, após terem cumprido com
seus rituais de rezas e oferendas, voltariam ao palácio.
Quando o
sol começou a se por, Sali estava novamente sentada ao lado do rei e
Farlimas começou sua narrativa. Mais uma vez, antes do alvorecer,
todos dormiam – o rei, seus servos, seus hóspedes, os emissários
e os sacerdotes – envoltos pelo êxtase. Mas entre eles, Sali e
Farlimas estavam despertos e sugaram o prazer dos lábios um do
outro. E abraçaram-se novamente, entrelaçando braços e pernas. E
assim as coisas continuaram, dia após dia, por muitos dias.
Mas se
antes havia corrido a notícia das histórias de Farlimas, agora
havia o rumor de que os sacerdotes estavam negligenciando suas
oferendas e orações. A intranquilidade começou a espalhar-se, até
que um dia, um mercador, em visita ao templo, perguntou quando
celebrariam o próximo festival da estação, pois estava planejando
uma viagem e gostaria de voltar para os festejos e precisava saber
quanto tempo tinha. O sacerdote, muito constrangido, pois há muitas
noites não via a lua e as estrelas, pediu que voltasse no dia
seguinte, que iria consultar as tabelas e só aí teria uma resposta
definitiva. Todo o clero foi convocado e o superior inquiriu qual
deles recentemente tinha observado o curso das estrelas. Nem uma
única voz respondeu. Todos tinham estado ouvindo as histórias de
Farlimas. 'Não há nenhum entre vocês que tenha observado o
curso das estrelas e a posição da lua?' Eles continuaram
sentados completamente imóveis, até que um, que era muito velho,
levantou-se e falou que haviam sido enfeitiçados por Farlimas e que
nenhum deles podia dizer quando deveriam ser celebradas as festas nem
quando o fogo deveria ser extinto e o novo aceso. O supremo sacerdote
preocupado com o que dizer às pessoas, pediu a um noviço que
trouxesse Sali até sua presença. Não lhe saía da cabeça o fato
de que enquanto Farlinas vivesse e falasse todos o escutariam. Quando
Sali apresentou-se diante dele, a primeira coisa que ouviu foi:
'Farlimas é contra Deus, tem que morrer'. Sali
estremeceu e lembrou-lhe que o narrador era Companheiro de Morte do
rei, que matar Falimas era também matar o rei. Teria o sacerdote
lido nas estrelas o dia da consumação? Não, não tinha nenhuma
resposta e isto o estava atormentando.
Novamente
solicitou uma audiência ao rei e o encontrou no palácio, ao lado da
irmã. Akaf, solítico, vendo-lhe o semblante abatido, pediu-lhe que
dissesse o que passava em seu coração. O ancião pediu-lhe que
falasse de Farlinas. 'Deus enviou-me, primeiro um
pensamento da proximidade do dia da minha morte e eu fiquei com medo.
Em seguida, Deus enviou-me a lembrança de Farlimas, que me havia
sido enviado como presente de além mar. Deus confundiu meu
discernimento com o primeiro pensamento. Com o segundo, ele alentou
meus sentidos e tornou-me feliz'. O sacerdote disse, quase num
lamento: 'Farlimas tem que morrer, ele está perturbando a ordem
revelada'. Akaf levantou-se, foi até uma janela lateral donde
se avistava o porto fervilhando de bens e após cofiar a barba por
instantes, sem voltar-se para o velho disse: 'Morro antes dele'.
Sali juntou-se ao irmão e olhando para o sumo sacerdote disse: 'A
vontade de Deus dará a decisão nesta questão'. Akaf voltou
para o trono e anunciou: 'Assim seja! E para isto, todo o povo
deverá testemunhar'.
Mensageiros
saíram pela cidade gritando aos quatro ventos que Farlimas, naquela
noite, falaria diante de todos. Um trono coberto por um véu foi
erigido para o rei na grande praça pública e, quando a noite
chegou, o povo, aos milhares, acorreu de todos os lados. Os hóspedes,
os emissários e os sacerdotes chegaram e acomodaram-se. Sali
sentou-se ao lado do irmão, Akaf, o rei velado. Foi ordenado que
Farlinas se apresentasse e ouvisse a acusação que o clero
apresentava contra ele, de destruição da ordem estabelecida cuja
sentença era a morte.
Farlimas
retirou os olhos de Sali, fitou a multidão, olhou de relance para os
sacerdotes e ergueu-se. 'Sou um servo de Deus e acredito que todo
o mal no coração humano é repugnante a Deus. Esta noite Deus
decidirá se mereço morrer ou viver'. E começou a narrativa.
Suas
palavras eram no início tão doces quanto o mel, sua voz penetrava
na multidão como a primeira chuva de verão na terra seca. De sua
língua exalava um perfume mais intenso que o do almíscar ou do
incenso; sua cabeça brilhava como uma luz de uma única luminária
numa noite negra. Sua narrativa era como o haxixe que faz as pessoas
felizes quando despertas e logo torna-as sonhadoras. Com o
aproximar-se do amanhecer, ele elevou a voz e suas palavras inundaram
os corações das pessoas como o Nilo crescente. Para algumas, eram
palavras pacificadoras quanto a entrada no Paraíso, mas para outras,
tão assustadoras quanto o Anjo da Morte. O júbilo tomou conta do
espírito de alguns e o horror do coração de outros. E quanto mais
se aproximava a aurora, mais poderosa se tornava sua voz, mais altas
suas reverberações dentro das pessoas, até que os corações da
multidão se levantaram uns contra os outros, em batalha; se
enfureceram uns contra outros como as nuvens no céu em noite de
tempestade. Raios de fúria e trovoadas de ira chocavam-se. Mas
quando nasceu o sol e a narrativa de Farlimas chegou ao fim, uma
perplexidade inexprimível tomou conta das mentes confusas dos que
permaneceram vivos. Ao olharem ao redor, viram que os sacerdotes
jaziam mortos no chão. Sali ergueu-se e prostrou-se diante do rei,
que estava por trás do véu e exclamou: 'Ó meu rei, retire o
véu, meu irmão: mostre-se ao seu povo e faça a oferenda você
mesmo. Pois estes aqui foram ceifados pelo Anjo da Morte, por ordem
de Deus'. Os servos retiraram o véu que encobria o trono real e
Akaf levantou-se. Ele era o primeiro de sua linhagem de reis que o
povo de Napara vira. Ele era jovem e tão belo de se apreciar como o
sol nascente. A multidão entrou em júbilo. Um cavalo branco foi
trazido para que montasse. Akaf dirigiu-se ao templo, tendo à sua
esquerda a irmã e à direita o contador de histórias. O jovem rei
pediu uma enxada e na entrada do templo cavou um buraco. Ordenou a
Farlimas que lançasse nele uma semente. Cavou outro e pediu que Sali
lançasse nele uma semente. Imediata e simultaneamente as duas
sementes germinaram, crescendo diante dos olhos das pessoas e, ao
meio dia, as espigas nascidas das duas sementes estavam maduras. O
rei extinguiu o fogo no templo e todos os pais de família da cidade
extinguiram as chamas de suas lareiras. Sali acendeu o novo fogo e
todas as jovens virgens da cidade vieram buscar fogo dessa chama. E
desde aquele dia, não houve mais sacrifícios humanos em Napata.
Akaf tornou-se o primeiro Nap de Napata a permanecer vivo até que a
Deus agradasse tirar sua vida na velhice. Quando morreu, Farlimas
sucedeu-o no trono, elevando ainda mais a fortuna do reino".
Arach-ben-Hassul
ia se preparando para sair quando um ouvinte o interpelou:
- Não
entendo como isto pode ter causado a ruína do reino!
O velho
barba branca contemplou-o e, enquanto ajeitava ao ombro sua abaia,
completou:
- A fama
de Farlimas tomou conta do mundo de tal forma que surgiu tanta inveja
nos corações do homens que quando ele morreu os países vizinhos
romperam seus tratados, declararam guerra ao reino e Napata sucumbiu,
invadida por selvagens e bárbaros que logo esgotaram suas minas de
ouro e cobre e destruíram suas cidades. Nada restou daqueles dias
gloriosos senão a lembrança dos contos que Farlimas tinha trazido
consigo do seu país, muito além do mar.
Muito bom, terei que nascer novamente e de um Paulo Laurindo ou pelo menos com sua cabeça e inteligencia, mas por enquanto fico só admirando.
ResponderExcluirÍris Pereira
Belo conto. Motivado por ele, fui pesquisar o reino de Napata.
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