sábado, 24 de setembro de 2011

A Tradição Relativa V - 2ª Parte


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O Companheiro de Morte, continuação

"Na manhã seguinte, no templo, Sali quis saber do sumo sacerdote se havia razão para condenar-lhe o julgamento. O ancião não tinha resposta. Alegou que precisava ouvir mais uma vez as histórias de Farlinas, precisava se preparar melhor e que, naquela noite, após terem cumprido com seus rituais de rezas e oferendas, voltariam ao palácio.

Quando o sol começou a se por, Sali estava novamente sentada ao lado do rei e Farlimas começou sua narrativa. Mais uma vez, antes do alvorecer, todos dormiam – o rei, seus servos, seus hóspedes, os emissários e os sacerdotes – envoltos pelo êxtase. Mas entre eles, Sali e Farlimas estavam despertos e sugaram o prazer dos lábios um do outro. E abraçaram-se novamente, entrelaçando braços e pernas. E assim as coisas continuaram, dia após dia, por muitos dias.

Mas se antes havia corrido a notícia das histórias de Farlimas, agora havia o rumor de que os sacerdotes estavam negligenciando suas oferendas e orações. A intranquilidade começou a espalhar-se, até que um dia, um mercador, em visita ao templo, perguntou quando celebrariam o próximo festival da estação, pois estava planejando uma viagem e gostaria de voltar para os festejos e precisava saber quanto tempo tinha. O sacerdote, muito constrangido, pois há muitas noites não via a lua e as estrelas, pediu que voltasse no dia seguinte, que iria consultar as tabelas e só aí teria uma resposta definitiva. Todo o clero foi convocado e o superior inquiriu qual deles recentemente tinha observado o curso das estrelas. Nem uma única voz respondeu. Todos tinham estado ouvindo as histórias de Farlimas. 'Não há nenhum entre vocês que tenha observado o curso das estrelas e a posição da lua?' Eles continuaram sentados completamente imóveis, até que um, que era muito velho, levantou-se e falou que haviam sido enfeitiçados por Farlimas e que nenhum deles podia dizer quando deveriam ser celebradas as festas nem quando o fogo deveria ser extinto e o novo aceso. O supremo sacerdote preocupado com o que dizer às pessoas, pediu a um noviço que trouxesse Sali até sua presença. Não lhe saía da cabeça o fato de que enquanto Farlinas vivesse e falasse todos o escutariam. Quando Sali apresentou-se diante dele, a primeira coisa que ouviu foi: 'Farlimas é contra Deus, tem que morrer'. Sali estremeceu e lembrou-lhe que o narrador era Companheiro de Morte do rei, que matar Falimas era também matar o rei. Teria o sacerdote lido nas estrelas o dia da consumação? Não, não tinha nenhuma resposta e isto o estava atormentando.

Novamente solicitou uma audiência ao rei e o encontrou no palácio, ao lado da irmã. Akaf, solítico, vendo-lhe o semblante abatido, pediu-lhe que dissesse o que passava em seu coração. O ancião pediu-lhe que falasse de Farlinas. 'Deus enviou-me, primeiro um pensamento da proximidade do dia da minha morte e eu fiquei com medo. Em seguida, Deus enviou-me a lembrança de Farlimas, que me havia sido enviado como presente de além mar. Deus confundiu meu discernimento com o primeiro pensamento. Com o segundo, ele alentou meus sentidos e tornou-me feliz'. O sacerdote disse, quase num lamento: 'Farlimas tem que morrer, ele está perturbando a ordem revelada'. Akaf levantou-se, foi até uma janela lateral donde se avistava o porto fervilhando de bens e após cofiar a barba por instantes, sem voltar-se para o velho disse: 'Morro antes dele'. Sali juntou-se ao irmão e olhando para o sumo sacerdote disse: 'A vontade de Deus dará a decisão nesta questão'. Akaf voltou para o trono e anunciou: 'Assim seja! E para isto, todo o povo deverá testemunhar'.

Mensageiros saíram pela cidade gritando aos quatro ventos que Farlimas, naquela noite, falaria diante de todos. Um trono coberto por um véu foi erigido para o rei na grande praça pública e, quando a noite chegou, o povo, aos milhares, acorreu de todos os lados. Os hóspedes, os emissários e os sacerdotes chegaram e acomodaram-se. Sali sentou-se ao lado do irmão, Akaf, o rei velado. Foi ordenado que Farlinas se apresentasse e ouvisse a acusação que o clero apresentava contra ele, de destruição da ordem estabelecida cuja sentença era a morte.

Farlimas retirou os olhos de Sali, fitou a multidão, olhou de relance para os sacerdotes e ergueu-se. 'Sou um servo de Deus e acredito que todo o mal no coração humano é repugnante a Deus. Esta noite Deus decidirá se mereço morrer ou viver'. E começou a narrativa.

Suas palavras eram no início tão doces quanto o mel, sua voz penetrava na multidão como a primeira chuva de verão na terra seca. De sua língua exalava um perfume mais intenso que o do almíscar ou do incenso; sua cabeça brilhava como uma luz de uma única luminária numa noite negra. Sua narrativa era como o haxixe que faz as pessoas felizes quando despertas e logo torna-as sonhadoras. Com o aproximar-se do amanhecer, ele elevou a voz e suas palavras inundaram os corações das pessoas como o Nilo crescente. Para algumas, eram palavras pacificadoras quanto a entrada no Paraíso, mas para outras, tão assustadoras quanto o Anjo da Morte. O júbilo tomou conta do espírito de alguns e o horror do coração de outros. E quanto mais se aproximava a aurora, mais poderosa se tornava sua voz, mais altas suas reverberações dentro das pessoas, até que os corações da multidão se levantaram uns contra os outros, em batalha; se enfureceram uns contra outros como as nuvens no céu em noite de tempestade. Raios de fúria e trovoadas de ira chocavam-se. Mas quando nasceu o sol e a narrativa de Farlimas chegou ao fim, uma perplexidade inexprimível tomou conta das mentes confusas dos que permaneceram vivos. Ao olharem ao redor, viram que os sacerdotes jaziam mortos no chão. Sali ergueu-se e prostrou-se diante do rei, que estava por trás do véu e exclamou: 'Ó meu rei, retire o véu, meu irmão: mostre-se ao seu povo e faça a oferenda você mesmo. Pois estes aqui foram ceifados pelo Anjo da Morte, por ordem de Deus'. Os servos retiraram o véu que encobria o trono real e Akaf levantou-se. Ele era o primeiro de sua linhagem de reis que o povo de Napara vira. Ele era jovem e tão belo de se apreciar como o sol nascente. A multidão entrou em júbilo. Um cavalo branco foi trazido para que montasse. Akaf dirigiu-se ao templo, tendo à sua esquerda a irmã e à direita o contador de histórias. O jovem rei pediu uma enxada e na entrada do templo cavou um buraco. Ordenou a Farlimas que lançasse nele uma semente. Cavou outro e pediu que Sali lançasse nele uma semente. Imediata e simultaneamente as duas sementes germinaram, crescendo diante dos olhos das pessoas e, ao meio dia, as espigas nascidas das duas sementes estavam maduras. O rei extinguiu o fogo no templo e todos os pais de família da cidade extinguiram as chamas de suas lareiras. Sali acendeu o novo fogo e todas as jovens virgens da cidade vieram buscar fogo dessa chama. E desde aquele dia, não houve mais sacrifícios humanos em Napata. Akaf tornou-se o primeiro Nap de Napata a permanecer vivo até que a Deus agradasse tirar sua vida na velhice. Quando morreu, Farlimas sucedeu-o no trono, elevando ainda mais a fortuna do reino".

Arach-ben-Hassul ia se preparando para sair quando um ouvinte o interpelou:
- Não entendo como isto pode ter causado a ruína do reino!
O velho barba branca contemplou-o e, enquanto ajeitava ao ombro sua abaia, completou:
- A fama de Farlimas tomou conta do mundo de tal forma que surgiu tanta inveja nos corações do homens que quando ele morreu os países vizinhos romperam seus tratados, declararam guerra ao reino e Napata sucumbiu, invadida por selvagens e bárbaros que logo esgotaram suas minas de ouro e cobre e destruíram suas cidades. Nada restou daqueles dias gloriosos senão a lembrança dos contos que Farlimas tinha trazido consigo do seu país, muito além do mar.


2 comentários:

  1. Muito bom, terei que nascer novamente e de um Paulo Laurindo ou pelo menos com sua cabeça e inteligencia, mas por enquanto fico só admirando.
    Íris Pereira

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  2. Belo conto. Motivado por ele, fui pesquisar o reino de Napata.

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