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O
Companheiro de Morte
Através
de um tradutor soube que um estudioso leu na obra de um mestre a
narração de um orgulhoso barba branca, numa roda de cameleiros,
tuaregues, berberes, árabes, núbios, etíopes e europeus, quando da
elevação da repressa de Assuã por ordens do Lord Kitchener, para
manter seus subordinados ocupados com seus próprios assuntos, visto
a Itália ter declarado guerra à Turquia, bombardeado e ocupado
Trípoli, Cineraica e as ilhas Dodecanesas. Reunidos no mercado da
cidade de El Obeid, a sudoeste de Cartum, no Sudão, em 1912, durante
sete dias vários contadores revesaram-se na contação de histórias.
No oitavo, Arach-ben-Hassul, descendente de uma das últimas famílias
sobreviventes da antiga guilda dos artesãos de cobre, levantou-se e
disse: “Agora sou eu que vou contar”. E falou de um tempo remoto
em que aquela região era verde e poderosa; que um dos quatro mais
ricos reis da terra, o Nap de Napata do Cordofão, era proprietário
de todo o cobre e ouro da região; que mantinha domínio sobre muitos
povos, todos fabricantes de armas e fornecedores de escravos para a
corte; que o reino era grande exportador de riquezas para todo o
Ocidente; que, embora fosse rico e poderoso, sua vida era a mais
triste e limitada, pois cada Nap de Napata podia reger apenas por um
breve período de anos e, que de um modo ou de outro, tudo isto junto
foi a causa da destruição do outrora próspero reino de Kash.
Infelizmente, esta região hoje não passa de um deserto físico e
cultural. Mas deixemos o chefe dos cameleiros falar, através do
mestre, do estudioso, do tradutor e deste amador que para vós
escreve. Assim:
“Em
todo o reino, todas as noites, os sacerdotes observavam as estrelas,
faziam oferendas e acendiam fogos sagrados por medo de perder a
trilha das estrelas e ficarem sem saber quando o rei deveria ser
morto. Assim, como tantas vezes antes, aquele dia chegou. Touros
foram sacrificados; todos os fogos da terra foram apagados; as
mulheres encerradas dentro das casas e, após terem decapitado o rei,
os sacerdotes acenderam o fogo novo e um novo rei foi convocado:
Akaf, sobrinho do imolado.
O
primeiro ato oficial de cada Nap de Napata era decidir quais pessoas
deveriam acompanhá-lo no caminho da morte. Elas eram escolhidas
entre os que lhe eram mais caros e o primeiro nomeado seria o que
dirigiria os outros. Um escravo chamado Farlimas, célebre por sua
arte de contar histórias, chegara à corte alguns anos antes,
enviado como presente por um rei do Extremo Oriente. E o novo Nap de
Napata disse: 'Este homem deverá ser meu primeiro acompanhante.
Ele me entreterá até a hora da minha morte e me fará feliz depois
da morte'. Para cuidar da chama sagrada, que deveria permanecer
acesa durante o período daquele reinado, os sacerdotes designaram
Sali-fu-Hamr, a irmã mais nova de Akaf. Ela devia cuidar do fogo
sagrado, manter-se absolutamente casta por toda a vida e ser morta,
não junto com o rei, mas imediatamente após, no momento de acender
a nova chama. Mas Sali-fu-Hamr tinha medo da morte e, quando ouviu
que a escolha havia recaído sobre ela, ficou apavorada.
O rei
viveu, por um tempo, feliz, em grande deleite, desfrutando da riqueza
e majestade de seu domínio. Passava as noites com seus amigos e com
todos os visitantes que chegavam à corte como emissários. Mas numa
noite fatídica ele compreendeu que, a cada um de seus dias
jubilosos, andava um passo adiante em direção à morte certa e
ficou com muito medo. Foi incapaz de afastar aquele pensamento
assustador e, deprimido, pediu que Farlimas contasse uma história.
'Chegou o dia em que você tem que me alegrar'. Farlimas
começou a contar uma história e todos escutaram. O rei e os
hóspedes esqueceram de beber, esqueceram de respirar. Até os
escravos esqueceram de servir e também de respirar. A arte de
Falimas deixou-os envolvidos numa deliciosa embriaguez. O rei tinha
esquecido seus pensamentos de morte.
Naquele
dia, Akaf e seu séquito mal puderam esperar até a noite e dali em
diante, todos os dias, Farlimas era convocado para desempenhar seu
papel. A notícia de suas narrativas espalhou-se por toda a corte, a
cidade, o país. O rei, a cada dia, presenteava-lhe uma bela peça de
vestuário. Os hóspedes e emissários davam-lhe ouro e pedras
preciosas. Ele ficou rico. E quando andava pelas ruas, seguido por
uma tropa de escravos, distribuía presentes aos necessitados. As
pessoas o amavam e passaram a desnudar o peito para ele, em sinal de
respeito. Sali, ao ouvir o milagre, enviou uma mensagem ao irmão:
'Deixe-me, apenas uma vez, ouvir Farlimas contar uma história'.
E um dia Sali veio. Farlimas viu Sali e, por um momento, perdeu seus
sentidos. Tudo o que ele via era Sali. Tudo o que Sali via era
Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E sua
narrativa foi no início como o haxixe, que leva a um suave
adormecimento e logo conduz os homens da inconsciência ao sono.
Depois de um tempo os hóspedes estavam dormindo; o rei estava
dormindo. Ouviam a história apenas em sonhos, até terem sido
completamente arrebatados. Mas Sali permaneceu desperta. Seus olhos
estavam fixos em Farlimas. E quando ele acabou a narrativa e
levantou-se, ela também levantou. Farlimas andou na direção de
Sali e Sali andou na direção de Farlimas. Ele abraçou-a; ela
abraçou-o e disse, olhando-o nos olhos: 'Nós não queremos
morrer. Devo pensar em uma maneira de ficarmos juntos'.
Naquele
dia, Sali foi ao sacerdote supremo e quis saber quem determinava
quando o velho fogo seria apagado e o novo aceso. O sacerdote
disse-lhe que isto era decidido por Deus. Diante da insistência da
moça em saber como Deus comunicava sua vontade aos sacerdotes, o
velho respondeu: 'Todas as noites observamos as estrelas.
Nunca as perdemos de vista. Todas as noites observamos a lua e
sabemos, de uma noite para outra, que estrelas estão aproximando-se
da lua e quais as que estão afastando-se. É por isto que sabemos.
Fazemos isso todas as noites. Se passasse uma série de noites em que
nada pudesse ser visto, não seríamos capazes de reencontrar nossas
estrelas e não saberíamos quando o fogo deveria ser extinto e aí
não estaríamos em condições de exercer nosso ofício'. Sali
mencionou que as obras de Deus eram magníficas e que a maior,
entretanto, não era a sua escrita no céu. Sua maior obra é a nossa
vida na terra. Lição que aprendera na noite passada. O sacerdote
não entendeu e quis saber do que ela estava falando. Ela respondeu
que Deus deu a Farlinas o dom de contar histórias como jamais
existiu igual, maior que sua escrita no céu. O velho, horrorizado,
disse que ela estava errada e levantou-se para abrir a porta. Sali
argumentou: 'A lua e as estrelas você conhece. Mas você
já ouviu as histórias de Farlimas'?
O sacerdote olhou para o chão e balançou a cabeça negativamente.
'Como, então, pode pronunciar um julgamento? Asseguro-lhe que
mesmo vocês sacerdotes, ao ouvir, se esquecerão de vigiar as
estrelas'. O ancião encarou-a e
ela, sentindo o ardor do fogo, continuou: 'Prove-me apenas
que estou errada e que a escrita nas estrelas é maior e mais
poderosa do que esta vida na terra'. O velho pegou-a pelo braço,
colocou-a na soleira da porta e despediu-se: 'É exatamente isso o
que vou provar', e fechou a porta.
Akaf
recebeu uma solicitação do alto sacerdote para que fosse permitido
ao clero entrar no palácio naquela noite afim de que pudessem ouvir
as histórias de Farlinas. O rei consentiu e assim, quando o sol se
aproximava da hora de se por e o rei, seus hóspedes e os emissários
estavam reunidos, juntaram-se a eles todos os sacerdotes, que
despiram a parte superior de seus corpos e se prostraram no chão. O
supremo sacerdote disse: 'Foi declarado que as histórias de
Farlimas são as mais magníficas das obras de Deus'. O rei disse
a ele: 'Vocês podem decidir por vocês mesmos'. O salão
estava repleto de gente e Farlimas abriu caminho entre ela. 'Comece,
meu querido Companheiro de Morte'. Farlimas olhou para Sali e
Sali para Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E
sua narrativa deixou-se ouvir enquanto o sol estava se pondo. Era
como o haxixe que anuvia e transporta, que induz ao relaxamento, que
leva ao desmaio profundo. De maneira que, quando a lua surgiu, o rei,
seus servos, seus hóspedes, os emissários e os sacerdotes dormiam
um sono profundo. Apenas Sali estava desperta e quando o relato
chegou ao fim, Farlimas ergueu-se e dirigiu-se para Sali: 'Deixe-me
beijar esses lábios dos quais saem palavras tão doces'. Eles
abraçaram-se, entrelaçando braços e pernas e deitaram-se entre
aqueles que dormiam, conhecendo uma felicidade de partir o coração".
Continua no próximo sábado...
Estou acompanhando. Bela fábula.
ResponderExcluir...Ler eu li todinho, mas não sei expressar o que achei.
ResponderExcluirÍris Pereira.
Obs. Pareces Nélida Piñon. É dificil entender.