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É sempre
bom iniciar um discurso com uma máxima, depois desenvolver o
argumento que corresponda. Mas como diria um esperto: se conselho
fosse bom não se dava de graça. Portanto, na falta de máxima
fiquemos com a mínima ou nenhuma prova de sabedoria. Enfeitar o bolo
para que? Deixemos solado mesmo e quem tenha fome que o consuma como
melhor lhe aprouver. Vamos e convenhamos, o mar não está pra peixe!
Aliás, tanto o mar quanto o peixe não estão nem aí quanto mais
chegando. Pelo menos não por estas bandas, afeitas a happy hours
e peladas no fim
de semana (e durante os dias da semana também) que ninguém é de
ferro e se o mar não está pra peixe o negócio é virar molusco.
Começo
lembrando que Carlos Rigot comprou um chapéu. Medo que o céu desabe
sobre sua cabeça e o encontre desprotegido. O remédio para
hipertensão não o tem aliviado. Tanto que, ontem por razões ainda
não totalmente esclarecidas, teve um ataque de pânico (ou terá
sido calundu?) e só não correu por aí desesperado e nu porque
tinha assumido o compromisso de visitar a vozinha que beira a casa
dos noventa e oito e a qualquer momento desaparecerá numa nuvenzinha
de pó rumo ao desconhecido, tamanho o seu entrunfinhamento em cima
de uma maca hospitalar. Não iria fazer desfeita à venerável, não
senhor, não àquela que tanto o embalou aconchegado ao colo, que
tanto apertou-lhe as bochechas a sorrir felicíssima cada vez que
fazia as suas (dele) vontades. Deixou de lado a frescura fidalgal e
apressou o passo com o firme propósito de afagar aqueles ralos
cabelos o quanto antes e assim poder retornar à costumeira atividade
de tentar juntar dois ou três liames na direção de qualquer coisa
semelhante a conclusão. Era assim: o nosso comensal catava aqui e
ali, com alguma perícia, diga-se de passagem, argumentos que
trouxesse ao seu conturbado espírito não a paz dos cemitérios mas
algum equilíbrio que permitisse continuar fazendo o que achava que
ainda tinha a fazer muito mais por obrigação do que por decisão
tomada. Decisão tomada mesmo foi a compra do chapéu. Intempestiva,
é bom lembrar. Mas o que não era inesperado na vida deste
neurastênico contumaz? Quanto mais precavia-se mais perturbado
ficava. Obcecado por organização, vinha tentando colocar um pouco
de ordem nos pensamentos e a forma encontrada foi a de criar um
universo paralelo onde trancafiou-se e de lá não saía nem a pau,
afinal mantinha lacrado os portões, jogado fora a chave e esquecido
a senha. O que não o impedia de continuava a dar bom dia,
responder aos tudo bem?,
bater o ponto, pagar prestações,
procurar descobrir uma maneira não teatral de evitar os
incômodos e, quem sabe um dia, ganhar na loteria pois vinha se
mostrando esta a única saída visível para os seus infortúnios,
visto não ter seguido o conselho paterno de encontrar algo rentável
com o que se ocupar e parar de ficar por aí caçando chifre em
cabeça de porca, que ao homem cabe construir uma família, escrever
um livro e se plantar uma árvore já está de bom tamanho, o resto é
o resto e só podemos ir até onde a nossa perna alcança e se o
mundo pudesse ser mudado teria sido em seu começo e não depois que
já viciou-se no desvio. É o tal negócio, quanto mais dizem para
gente não fazer uma coisa aí é que desatinamos fazê-la, não pra
contrariar como querem alguns rebeldes mimados mas, porque a natureza
não tolera arreios nem freios e nada supera a experiência por mais
aguda que seja a lógica. Porém sensatez é bom e não tem efeito
colateral. Daí esta joia da sabedoria humana que hoje conhecemos por
meio termo. Mas como
algo que é meio pode ser inteiro? É certo que por isto, integridade
seja algo tão raro e por ser tão escassa, seu valor resulta nulo
por não existir demanda.
Foi neste ponto, no momento desta inflexão, que bati à sua porta na
tentativa de encontrar com o meu amigo alguma resposta para a minha
perplexidade diante de um fato que encontrei noticiado na Gazeta
naquela manhã fria e desolada: uma doméstica havia sido condenada,
em última instância, a um ano e três meses de cadeia pelo crime de
roubo. Havia sido denunciada por seu antigo patrão de tê-lo
surrupiado, num raro momento de descuido, a singela quantia de cento
e vinte reais. Os advogados, confiantes na benevolência da justiça,
imploraram piedade. Em vão. À mulher restou resignar-se da sentença
e cumprir a pena conforme prescreve o nosso acerbo e volumoso Código
Penal.
Claro que não aguardei que ele me oferecesse um chá, um café ou um
simples copo d'água até porque Carlos Rigot não se dá ao trabalho
de levantar as pestanas quando está imerso em sua rotina de leitura,
atitude que, em passado recente, fez com que a família buscasse
intervenção psiquiátrica temerosa que dali possa sair algum
artefato capaz de destruir o modo de vida ocidental. Ponderados que
são, acreditam que tudo em excesso é doença, que ao bom cidadão
não cabe excessos e para que tudo fique de acordo é preciso que
cada um se comporte dentro da mais estrita observância dos bons
modos e dos bons costumes conforme reza a tradição expressa na
letra da lei. A ignorância é insegura, daí deitar raízes
profundas na tentativa de autoafirmação. O que nunca cogitavam era
que a curiosidade do meu amigo havia atingido um ponto para além do
cabo da boa esperança, havia alcançado aquele ponto onde nada nem
ninguém o demoveria do direito de compreender porque dois e dois são
quatro e, principalmente, ter para si se esta conta é mesmo exata.
Joguei-me na cadeira de praia displicentemente disposta diante da
televisão, não sem antes afastar algumas peças de roupas que
descansavam em seus braços. - Cara, você precisa dar um jeito nisto
aqui, arrisquei na tentativa de fazê-lo devotar-me atenção. Não
ousava censurar meu amigo. Estava acostumado às suas manias e até
me sentia bem ao seu lado por conta de seus discursos, alguns cheios
de luz e retos outros recobertos de nuvens sombrias, tortuosos e
trôpegos como os passos de um bêbado carente de solidariedade numa
madrugada de aperreio. O que não tolerava era aquele seu ar de
ausência quando decidia enfronhar-se num assunto. Tornava-se
insuportável e não havia santo no mundo capaz de retirá-lo do
buraco onde se metia. Teimoso como uma porta, só o tínhamos neste
mundo quando lhe aprazava ou convinha. Resignado, aguardei que
reparasse na minha presença e se dignasse dar-me ouvidos. O que
demorou alguns intermináveis minutos. Finalmente passou a mão sobre
a cabeça como se afastasse algo incomodo e persistente, voltou-se
para mim e perguntou com aquela loquacidade peculiar: - E aí? Fiz de
conta estar no fim de uma peroração e repliquei: - E então?!
- Então que ela foi absolvida. A Câmara aceitou o argumento de
anterioridade do crime e decidiu que ela continua deputada mesmo
tendo sido flagrada com a mão na massa num ato de lesa pátria.
Lembrei do caso e incontinente aproveitei para contar-lhe do que me
afligia buscando traçar um paralelo entre os dois episódios.
Indignado, aventurei-me discorrer sobre que tipo de justiça é esta
que usa todo rigor para condenar um fraco e mostra-se convivente com
os malfeitos dos poderosos?
- Mas a justiça foi feita! Nos dois casos, os julgadores cumpriram a
lei.
- Lei injusta, isto sim!
- Porque aqui não se trata de justiça.
- Trata-se do que então?
- De poder. Você leu Alice no País dos Espelhos? Diante do ovo que
fala, Alice questiona-lhe o direito de fazer as palavras significarem
coisas diferentes do que elas querem dizer para as outras pessoas. E
o ovo, do alto do fino muro que o sustenta, sentencia: A questão
é quem é que manda aqui.
É exatamente aí que reside a questão básica do nosso país: quem é que manda. Fora disso, há apenas cogitações.
ResponderExcluir...Mas me permita perguntar: Realmente alguém se importa? Alguém de fato manda ou tem autoridade?
ResponderExcluiré difícil mesmo tudo isto. Vamos comer o bolo sem recheio e sem cobertura...