sábado, 10 de setembro de 2011

Quem É Que Manda Aqui?


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É sempre bom iniciar um discurso com uma máxima, depois desenvolver o argumento que corresponda. Mas como diria um esperto: se conselho fosse bom não se dava de graça. Portanto, na falta de máxima fiquemos com a mínima ou nenhuma prova de sabedoria. Enfeitar o bolo para que? Deixemos solado mesmo e quem tenha fome que o consuma como melhor lhe aprouver. Vamos e convenhamos, o mar não está pra peixe! Aliás, tanto o mar quanto o peixe não estão nem aí quanto mais chegando. Pelo menos não por estas bandas, afeitas a happy hours e peladas no fim de semana (e durante os dias da semana também) que ninguém é de ferro e se o mar não está pra peixe o negócio é virar molusco.

Começo lembrando que Carlos Rigot comprou um chapéu. Medo que o céu desabe sobre sua cabeça e o encontre desprotegido. O remédio para hipertensão não o tem aliviado. Tanto que, ontem por razões ainda não totalmente esclarecidas, teve um ataque de pânico (ou terá sido calundu?) e só não correu por aí desesperado e nu porque tinha assumido o compromisso de visitar a vozinha que beira a casa dos noventa e oito e a qualquer momento desaparecerá numa nuvenzinha de pó rumo ao desconhecido, tamanho o seu entrunfinhamento em cima de uma maca hospitalar. Não iria fazer desfeita à venerável, não senhor, não àquela que tanto o embalou aconchegado ao colo, que tanto apertou-lhe as bochechas a sorrir felicíssima cada vez que fazia as suas (dele) vontades. Deixou de lado a frescura fidalgal e apressou o passo com o firme propósito de afagar aqueles ralos cabelos o quanto antes e assim poder retornar à costumeira atividade de tentar juntar dois ou três liames na direção de qualquer coisa semelhante a conclusão. Era assim: o nosso comensal catava aqui e ali, com alguma perícia, diga-se de passagem, argumentos que trouxesse ao seu conturbado espírito não a paz dos cemitérios mas algum equilíbrio que permitisse continuar fazendo o que achava que ainda tinha a fazer muito mais por obrigação do que por decisão tomada. Decisão tomada mesmo foi a compra do chapéu. Intempestiva, é bom lembrar. Mas o que não era inesperado na vida deste neurastênico contumaz? Quanto mais precavia-se mais perturbado ficava. Obcecado por organização, vinha tentando colocar um pouco de ordem nos pensamentos e a forma encontrada foi a de criar um universo paralelo onde trancafiou-se e de lá não saía nem a pau, afinal mantinha lacrado os portões, jogado fora a chave e esquecido a senha. O que não o impedia de continuava a dar bom dia, responder aos tudo bem?, bater o ponto, pagar prestações, procurar descobrir uma maneira não teatral de evitar os incômodos e, quem sabe um dia, ganhar na loteria pois vinha se mostrando esta a única saída visível para os seus infortúnios, visto não ter seguido o conselho paterno de encontrar algo rentável com o que se ocupar e parar de ficar por aí caçando chifre em cabeça de porca, que ao homem cabe construir uma família, escrever um livro e se plantar uma árvore já está de bom tamanho, o resto é o resto e só podemos ir até onde a nossa perna alcança e se o mundo pudesse ser mudado teria sido em seu começo e não depois que já viciou-se no desvio. É o tal negócio, quanto mais dizem para gente não fazer uma coisa aí é que desatinamos fazê-la, não pra contrariar como querem alguns rebeldes mimados mas, porque a natureza não tolera arreios nem freios e nada supera a experiência por mais aguda que seja a lógica. Porém sensatez é bom e não tem efeito colateral. Daí esta joia da sabedoria humana que hoje conhecemos por meio termo. Mas como algo que é meio pode ser inteiro? É certo que por isto, integridade seja algo tão raro e por ser tão escassa, seu valor resulta nulo por não existir demanda.

Foi neste ponto, no momento desta inflexão, que bati à sua porta na tentativa de encontrar com o meu amigo alguma resposta para a minha perplexidade diante de um fato que encontrei noticiado na Gazeta naquela manhã fria e desolada: uma doméstica havia sido condenada, em última instância, a um ano e três meses de cadeia pelo crime de roubo. Havia sido denunciada por seu antigo patrão de tê-lo surrupiado, num raro momento de descuido, a singela quantia de cento e vinte reais. Os advogados, confiantes na benevolência da justiça, imploraram piedade. Em vão. À mulher restou resignar-se da sentença e cumprir a pena conforme prescreve o nosso acerbo e volumoso Código Penal.

Claro que não aguardei que ele me oferecesse um chá, um café ou um simples copo d'água até porque Carlos Rigot não se dá ao trabalho de levantar as pestanas quando está imerso em sua rotina de leitura, atitude que, em passado recente, fez com que a família buscasse intervenção psiquiátrica temerosa que dali possa sair algum artefato capaz de destruir o modo de vida ocidental. Ponderados que são, acreditam que tudo em excesso é doença, que ao bom cidadão não cabe excessos e para que tudo fique de acordo é preciso que cada um se comporte dentro da mais estrita observância dos bons modos e dos bons costumes conforme reza a tradição expressa na letra da lei. A ignorância é insegura, daí deitar raízes profundas na tentativa de autoafirmação. O que nunca cogitavam era que a curiosidade do meu amigo havia atingido um ponto para além do cabo da boa esperança, havia alcançado aquele ponto onde nada nem ninguém o demoveria do direito de compreender porque dois e dois são quatro e, principalmente, ter para si se esta conta é mesmo exata.

Joguei-me na cadeira de praia displicentemente disposta diante da televisão, não sem antes afastar algumas peças de roupas que descansavam em seus braços. - Cara, você precisa dar um jeito nisto aqui, arrisquei na tentativa de fazê-lo devotar-me atenção. Não ousava censurar meu amigo. Estava acostumado às suas manias e até me sentia bem ao seu lado por conta de seus discursos, alguns cheios de luz e retos outros recobertos de nuvens sombrias, tortuosos e trôpegos como os passos de um bêbado carente de solidariedade numa madrugada de aperreio. O que não tolerava era aquele seu ar de ausência quando decidia enfronhar-se num assunto. Tornava-se insuportável e não havia santo no mundo capaz de retirá-lo do buraco onde se metia. Teimoso como uma porta, só o tínhamos neste mundo quando lhe aprazava ou convinha. Resignado, aguardei que reparasse na minha presença e se dignasse dar-me ouvidos. O que demorou alguns intermináveis minutos. Finalmente passou a mão sobre a cabeça como se afastasse algo incomodo e persistente, voltou-se para mim e perguntou com aquela loquacidade peculiar: - E aí? Fiz de conta estar no fim de uma peroração e repliquei: - E então?!

- Então que ela foi absolvida. A Câmara aceitou o argumento de anterioridade do crime e decidiu que ela continua deputada mesmo tendo sido flagrada com a mão na massa num ato de lesa pátria. Lembrei do caso e incontinente aproveitei para contar-lhe do que me afligia buscando traçar um paralelo entre os dois episódios. Indignado, aventurei-me discorrer sobre que tipo de justiça é esta que usa todo rigor para condenar um fraco e mostra-se convivente com os malfeitos dos poderosos?
- Mas a justiça foi feita! Nos dois casos, os julgadores cumpriram a lei.
- Lei injusta, isto sim!
- Porque aqui não se trata de justiça.
- Trata-se do que então?
- De poder. Você leu Alice no País dos Espelhos? Diante do ovo que fala, Alice questiona-lhe o direito de fazer as palavras significarem coisas diferentes do que elas querem dizer para as outras pessoas. E o ovo, do alto do fino muro que o sustenta, sentencia: A questão é quem é que manda aqui. 

2 comentários:

  1. É exatamente aí que reside a questão básica do nosso país: quem é que manda. Fora disso, há apenas cogitações.

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  2. ...Mas me permita perguntar: Realmente alguém se importa? Alguém de fato manda ou tem autoridade?
    é difícil mesmo tudo isto. Vamos comer o bolo sem recheio e sem cobertura...

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