sábado, 3 de setembro de 2011

O Sobrevivente


cienciahoje.uol.com.br


Acendeu um cigarro e pronto. Porque não um cachimbo, já reclamaram, até elogiaram: ah, o cheiro do fumo... mas, olha, falo do bom, importado. Depois é um hábito sofisticado, envolve ritual, essas coisas que tornam a vida mais interessante, emprestam a existência algum estilo, estilo de verdade, não este fedorento vício. Mas como acostumara-se a servir-se das novidades quando elas se dispusessem, livre e espontaneamente, chegar às suas mãos em forma de presente, Carlos Rigot bateu a cinza e retomou a linha de pensamento que vinha ocupando seus neurônios naquela tarde, agoniado com a perspectiva de ter que cumprir mais um ritual familiar, dessas obrigações que nos cansam mais do que se tivéssemos escalado uma alta montanha com botas de chumbo e uma enorme mochila entupida de pesados e inúteis pertences presa às costas . Não é que desgostasse das festinhas que os parentes constantemente faziam, regadas a muita cerveja, quitutes deliciosos e um ou outro papo capaz de produzir grandes risadas mas, ultimamente vinha dedicando o pouco tempo que tinha para si em seus próprios devaneios, afinal desejava experimentar algum prazer intelectual visto que os de outra ordem andavam meio escassos ultimamente. Ademais era uma boa oportunidade para testar uma teoria que vinha desenvolvendo, a de que quando você esta atoa ninguém o perturba enquanto que, basta pensar em ocupar-se alguém sempre lhe bate à porta. Bem, se nesta tarde sua teoria rendesse mais um ponto na tendência positiva não teria saída senão inventar alguma desculpa e aguardar para a próxima os falares de desconfiança e censura que inevitavelmente choviam sobre seu caráter arredio e pouco afeito às costumeiras discussões e projetos a que todos se lançavam certos de estarem fazendo o melhor por suas vidas. Olhou para o canto costumeiro da janela e entregou-se à cena na ânsia de compreender algo daquela história ouvida no coletivo semana passada, alheio à campainha do telefone que insistia em desviá-lo do caminho. Bingo. Ligo depois de volta, disse apressado e colocou o cotovelo sobre a escrivaninha enquanto segurava os lábios com o indicador e o queixo com o polegar.

O ônibus partira de Casa Nova um pouco antes das sete e logo às dez, com o sol tinindo, atingira a primeira parada. Os dezessete que ia às compras em Estância Eldorado, comportavam-se como em férias, férias adolescentes. O motorista avisou quinze minutos e ninguém lhe prestou atenção entretidos que estavam com a confissão de um novo possível romance surgido na última hora entre Arminda e Julião, os mais novos integrantes daquela singular caravana que já ia para o sétimo ano e que nunca deixara de fazer a alegria dos seus integrantes: uma semana longe de casa, com dinheiro no bolso e muita novidade para ver e comprar, além da companhia de iguais, seguros de contarem com a discrição mútua, desde que as escorregadelas não atrapalhassem os negócios.

Quando atingiram a Serra do Espinhaço, Julião embalado por meia dúzia de latinhas, chamou Arminda para dançar e a turma toda apoiou não sem protesto do motorista que solicitou moderação dentro do seu veículo, que não toleraria descontroles em sua nave, que aquela era a última vez que avisava, que se tivesse que falar de novo pararia o ônibus e mandaria todos prosseguirem a pé. Mas qual o quê, estavam pagando, bem melhor ficasse calado, tocasse o barco adiante, a festa estava apenas começando, não adiantava ficar nervoso, que já devia estar acostumado, que aquela já era a quarta vez que os conduzia, melhor ficar de olho da estrada e evitasse que a vaca fosse pro brejo. O condutor engoliu, ruminou, cuspiu fora mas na boca ferveu um gosto de desfeita e, enquanto o punhal do desrespeito enterrava-se no espirito, deixou o pensamento perambular em masmorras, perder-se em subterrâneos mentais que a gente sabe bem poucos saíram de lá para contar, mas logo recuperou o folego e desculpou-se consigo mesmo ao lembrar das gorjetas e mimos que lhe enchiam os bolsos e braços ao final da jornada. Que a gente não faz, que a gente não tolera quando se pensa na crianças, choramingou de si para si e nem teve tempo de enxugar os olhos subitamente invadidos por um sentimento de vazio ao pensar no destino dos filhos na estrada da vida... o ônibus foi colhido de frente por uma carreta, rolou ribanceira abaixo, tombou, tombou, tombou cinco vezes, bateu numa rocha e escapuliu na transversal direto para o abismo.

Duas horas depois, enquanto o perímetro era isolado, a polícia disciplinava uma horda de curiosos, bombeiros preparavam a descida, paramédicos vistoriavam equipamentos, uma ambulância aproximava-se gemendo agonia e uma chusma de repórteres disputavam terreno ávidos de ângulos, um lavrador gritou: tem alguém subindo o morro! Era Julião. O único sobrevivente. Pega daqui, segura dali, ajudaram-no a galgar os últimos metros na direção da pista e depositaram-no numa maca dentro do carro resgate. Milagre. Após passar por um exame preliminar constatou-se que o recuperado não apresentava qualquer arranhão, ferimento ou traumatismo decorrente da sinistro: muito pelo contrário, parecia saído de uma festinha de fim de semana pronto para encarar a dureza de uma segunda feira. Milagre. O repórter da rádio local, concunhado de um dos policiais, conseguiu chegar até Julião e o arrastou até a lateral da ambulância, local que lhes propiciaria alguns minutos distantes do assédio inevitável. Ao ser indagado sobre o que acontecera, Julião, sem pestanejar, vaticinou: - Ouvi um estrondo, me agarrei no banco e pedi a deus que me salvasse! Milagre. E o repórter, de microfone aberto para aquela cobertura que, na sua apressada contabilidade, poderia render semanas de editoriais, colunas, debates, interpretações de especialistas, campanhas pró e contra insistiu, visivelmente insatisfeito com aquela primeira resposta, resposta que encerrava tudo, botava um ponto final na história. Pediu mais, detalhes, minúcias, enveredou pela história pregressa, cogitou relações, suscitou manobras, descasos, omissões, na desesperada e profissional tentativa de oferecer aos seus ouvintes e quicá ouvintes que ainda não eram seus, algo bombástico, algo extraordinário, a ponta de um novelo que ao ser desembaraçado traria ao mundo novas perspectivas, afinal detinha em sua locução a oportunidade de fazer bonito e quem sabe cacifar-se para vaga numa emissora de alcance nacional.

Tão absorvidos estavam em seus próprios redemoinhos, da perplexidade um, da ambição outro, nem perceberam que, na contra mão, um caminhão desgovernado, invadira o cordão de isolamento e, tendo abatido dois ou três desavisados que insistiam em fotografar o tumulto, veio com o peso de suas quinze toneladas, acrescido de outras tantas pela implacável velocidade, chocar-se com a ambulância e espremê-los entre as ferragens, invalidando qualquer veleidade que, por alguns instantes, tenha embalado suas vidas”.

Enquanto rabiscava garatujas na folha de papel estrategicamente depositada sobre a mesa, Carlos Rigot anotou duas ou três conclusões, quem sabe as usasse em argumentos futuros. Mas que segurança tinha desses seus achados? Claro que não desejava participar de disputas científicas, artísticas, religiosas ou metafísicas então, guardaria pra si a expectativa de algum juízo sintético. Seguramente a reconstituição não correspondiam aos fatos. Mas temos como saber da verdade? E o mais importante: que significado ela nos revela, em que consequências ela nos atola? É! Somos livres para contar um conto e acrescentar um ponto. Para livre interpretar basta começar, devemos isto aos protestantes.

Chegado ao fim da sua sumária investigação, não se sentia nem um pouco melhor, nem mais nem menos recompensado, nem mais nem menos sabido. Sua breve análise não lhe trouxera aquele prazer mas dera-lhe uma certeza: deveria ter ido à festa. Deveria ter aceito o convite dos parentes e ido empanturrar-se de guloseimas e cevada, como fazem os chineses quando seus braços não alcançam a pipa que está no alto.

  

4 comentários:

  1. As vezes sinto-me igual a ele, sem vontade de participar...Mas ter essas ideias tão catastróficas e mortais, cheguei a arrepiar-me. Eu preferia ficar quietinha mas escreveria algo mais suave.
    Penso que você deu vida a este personagem.
    Íris Pereira

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  2. É o problema de não saber eleger prioridades, quando se tem a pretensão do certo. O rega-bofe talvez lhe rendesse mais.

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  3. Adoro os comentários de Saint-Clair Mello, vai tão direto e diz pouco mas diz tudo.
    Um forte abraço com minha admiração pra ele.
    Íris Pereira.

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  4. Parece história que vemos logo ali, na tv.Gostei, viu?

    Abraço

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