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Acendeu
um cigarro e pronto. Porque não um cachimbo, já reclamaram, até
elogiaram: ah, o cheiro do fumo... mas, olha, falo do bom, importado.
Depois é um hábito sofisticado, envolve ritual, essas coisas que
tornam a vida mais interessante, emprestam a existência algum
estilo, estilo de verdade, não este fedorento vício. Mas como
acostumara-se a servir-se das novidades quando elas se dispusessem,
livre e espontaneamente, chegar às suas mãos em forma de presente,
Carlos Rigot bateu a cinza e retomou a linha de pensamento que vinha
ocupando seus neurônios naquela tarde, agoniado com a perspectiva de
ter que cumprir mais um ritual familiar, dessas obrigações que nos
cansam mais do que se tivéssemos escalado uma alta montanha com
botas de chumbo e uma enorme mochila entupida de pesados e inúteis
pertences presa às costas . Não é que desgostasse das festinhas que
os parentes constantemente faziam, regadas a muita cerveja, quitutes
deliciosos e um ou outro papo capaz de produzir grandes risadas mas,
ultimamente vinha dedicando o pouco tempo que tinha para si em seus
próprios devaneios, afinal desejava experimentar algum prazer
intelectual visto que os de outra ordem andavam meio escassos
ultimamente. Ademais era uma boa oportunidade para testar uma teoria
que vinha desenvolvendo, a de que quando você esta atoa ninguém o
perturba enquanto que, basta pensar em ocupar-se alguém sempre lhe
bate à porta. Bem, se nesta tarde sua teoria rendesse mais um ponto
na tendência positiva não teria saída senão inventar alguma
desculpa e aguardar para a próxima os falares de desconfiança e
censura que inevitavelmente choviam sobre seu caráter arredio e
pouco afeito às costumeiras discussões e projetos a que todos se
lançavam certos de estarem fazendo o melhor por suas vidas. Olhou
para o canto costumeiro da janela e entregou-se à cena na ânsia de
compreender algo daquela história ouvida no coletivo semana passada,
alheio à campainha do telefone que insistia em desviá-lo do
caminho. Bingo. Ligo depois de volta, disse apressado e colocou o
cotovelo sobre a escrivaninha enquanto segurava os lábios com o
indicador e o queixo com o polegar.
“O
ônibus partira de Casa Nova um pouco antes das sete e logo às dez,
com o sol tinindo, atingira a primeira parada. Os dezessete que ia às
compras em Estância Eldorado, comportavam-se como em férias, férias
adolescentes. O motorista avisou quinze minutos e ninguém lhe
prestou atenção entretidos que estavam com a confissão de um novo
possível romance surgido na última hora entre Arminda e Julião, os
mais novos integrantes daquela singular caravana que já ia para o
sétimo ano e que nunca deixara de fazer a alegria dos seus
integrantes: uma semana longe de casa, com dinheiro no bolso e muita
novidade para ver e comprar, além da companhia de iguais, seguros de
contarem com a discrição mútua, desde que as escorregadelas não
atrapalhassem os negócios.
Quando
atingiram a Serra do Espinhaço, Julião embalado por meia dúzia de
latinhas, chamou Arminda para dançar e a turma toda apoiou não sem
protesto do motorista que solicitou moderação dentro do seu
veículo, que não toleraria descontroles em sua nave, que aquela era
a última vez que avisava, que se tivesse que falar de novo pararia o
ônibus e mandaria todos prosseguirem a pé. Mas qual o quê, estavam
pagando, bem melhor ficasse calado, tocasse o barco adiante, a festa
estava apenas começando, não adiantava ficar nervoso, que já devia
estar acostumado, que aquela já era a quarta vez que os conduzia,
melhor ficar de olho da estrada e evitasse que a vaca fosse pro
brejo. O condutor engoliu, ruminou, cuspiu fora mas na boca ferveu um
gosto de desfeita e, enquanto o punhal do desrespeito enterrava-se no
espirito, deixou o pensamento perambular em masmorras, perder-se em
subterrâneos mentais que a gente sabe bem poucos saíram de lá para
contar, mas logo recuperou o folego e desculpou-se consigo mesmo ao
lembrar das gorjetas e mimos que lhe enchiam os bolsos e braços ao
final da jornada. Que a gente não faz, que a gente não tolera
quando se pensa na crianças, choramingou de si para si e nem teve
tempo de enxugar os olhos subitamente invadidos por um sentimento de
vazio ao pensar no destino dos filhos na estrada da vida... o ônibus
foi colhido de frente por uma carreta, rolou ribanceira abaixo, tombou, tombou, tombou cinco vezes, bateu numa rocha e escapuliu na
transversal direto para o abismo.
Duas
horas depois, enquanto o perímetro era isolado, a polícia
disciplinava uma horda de curiosos, bombeiros preparavam a descida,
paramédicos vistoriavam equipamentos, uma ambulância aproximava-se
gemendo agonia e uma chusma de repórteres disputavam terreno ávidos
de ângulos, um lavrador gritou: tem alguém subindo o morro! Era
Julião. O único sobrevivente. Pega daqui, segura dali, ajudaram-no
a galgar os últimos metros na direção da pista e depositaram-no
numa maca dentro do carro resgate. Milagre. Após passar por um exame
preliminar constatou-se que o recuperado não apresentava qualquer
arranhão, ferimento ou traumatismo decorrente da sinistro: muito
pelo contrário, parecia saído de uma festinha de fim de semana
pronto para encarar a dureza de uma segunda feira. Milagre. O
repórter da rádio local, concunhado de um dos policiais, conseguiu
chegar até Julião e o arrastou até a lateral da ambulância, local
que lhes propiciaria alguns minutos distantes do assédio
inevitável. Ao ser indagado sobre o que acontecera, Julião, sem
pestanejar, vaticinou: - Ouvi um estrondo, me agarrei no banco e pedi
a deus que me salvasse! Milagre. E o repórter, de microfone aberto
para aquela cobertura que, na sua apressada contabilidade, poderia
render semanas de editoriais, colunas, debates, interpretações de
especialistas, campanhas pró e contra insistiu, visivelmente
insatisfeito com aquela primeira resposta, resposta que encerrava
tudo, botava um ponto final na história. Pediu mais, detalhes,
minúcias, enveredou pela história pregressa, cogitou relações,
suscitou manobras, descasos, omissões, na desesperada e profissional
tentativa de oferecer aos seus ouvintes e quicá ouvintes que ainda
não eram seus, algo bombástico, algo extraordinário, a ponta de um
novelo que ao ser desembaraçado traria ao mundo novas perspectivas,
afinal detinha em sua locução a oportunidade de fazer bonito e quem
sabe cacifar-se para vaga numa emissora de alcance nacional.
Tão
absorvidos estavam em seus próprios redemoinhos, da perplexidade um,
da ambição outro, nem perceberam que, na contra mão, um caminhão
desgovernado, invadira o cordão de isolamento e, tendo abatido dois
ou três desavisados que insistiam em fotografar o tumulto, veio com
o peso de suas quinze toneladas, acrescido de outras tantas pela
implacável velocidade, chocar-se com a ambulância e espremê-los
entre as ferragens, invalidando qualquer veleidade que, por alguns
instantes, tenha embalado suas vidas”.
Enquanto
rabiscava garatujas na folha de papel estrategicamente depositada
sobre a mesa, Carlos Rigot anotou duas ou três conclusões, quem
sabe as usasse em argumentos futuros. Mas que segurança tinha desses
seus achados? Claro que não desejava participar de disputas
científicas, artísticas, religiosas ou metafísicas então,
guardaria pra si a expectativa de algum juízo sintético.
Seguramente a reconstituição não correspondiam aos fatos. Mas
temos como saber da verdade? E o mais importante: que
significado ela nos revela, em que consequências ela nos atola? É!
Somos livres para contar um conto e acrescentar um ponto. Para livre
interpretar basta começar, devemos isto aos protestantes.
Chegado
ao fim da sua sumária investigação, não se sentia nem um pouco
melhor, nem mais nem menos recompensado, nem mais nem menos sabido.
Sua breve análise não lhe trouxera aquele prazer mas
dera-lhe uma certeza: deveria ter ido à festa. Deveria ter aceito o
convite dos parentes e ido empanturrar-se de guloseimas e cevada,
como fazem os chineses quando seus braços não alcançam a pipa que
está no alto.
As vezes sinto-me igual a ele, sem vontade de participar...Mas ter essas ideias tão catastróficas e mortais, cheguei a arrepiar-me. Eu preferia ficar quietinha mas escreveria algo mais suave.
ResponderExcluirPenso que você deu vida a este personagem.
Íris Pereira
É o problema de não saber eleger prioridades, quando se tem a pretensão do certo. O rega-bofe talvez lhe rendesse mais.
ResponderExcluirAdoro os comentários de Saint-Clair Mello, vai tão direto e diz pouco mas diz tudo.
ResponderExcluirUm forte abraço com minha admiração pra ele.
Íris Pereira.
Parece história que vemos logo ali, na tv.Gostei, viu?
ResponderExcluirAbraço