sábado, 6 de agosto de 2011

Uma Crônica das Trevas

macaraninews.com.br



Passou o dia com a visão do olho esquerdo comprometida. Perto das nove horas, como sempre fazia todas as manhãs, logo após banhar-se, saboreava uma salada de frutas a ruminar o furação que teria naquele dia - uma série de gravações para selecionar e enviar aos analistas: últimos registros das entrevistas daquele projeto que vinha arrastando-se por quase três meses, por falta de pessoal qualificado, gente com desenvoltura suficiente para falar em nome da empresa e conseguir ser bem atendido sem as costumeiras recusas e abandonos.... Percebeu que o olho ficou embaçado, umedecido e daí puf!

Lembrou daquela vez, também pela manhã, quando ao iniciar a leitura de Dom Casmurro, não conseguiu prosseguir - a vista ficou turva, as letras dançaram e não viu alternativa senão correr à ótica mais próxima, ser encaminhado a um oculista de plantão no andar superior, e sair de lá com um bifocal numa armação vermelha que lhe emprestou, deveras, um ar melhorado.

E agora ali, na sala, diante da televisão, sem aviso, sem sinal, assim, do nada, o olho esquerdo esqueceu de enxergar. Tapou o direito com a mão e o que viu foram sombras e rasgos de luz, rajadas de vermelho, coriscantes. Sentiu-se como o seu diafragma ficasse aberto tempo suficiente para obter uma foto de longa exposição, as luzes formando rastros contínuos. Não se avexou e falou em voz alta: fiquei cego do olho esquerdo! Avisou, pelo telefone, ao gerente, que não iria naquele dia, que estava de saída para a clínica em busca de diagnóstico e cuidados.

No trajeto, no ônibus, sucessivas vezes repetiu o gesto de tapar o olho direito e observar as mutações da tímida claridade que o tempo exibia e aquilo o divertiu. Não sentindo dores, aproveitou para brincar um pouco com aquela sensação (passaria por uma viagem de ácido, daquelas que fizeram a festa da rapaziada nos anos sessenta - embora naquele momento não houvesse nenhum artificio, tudo por obra e graça da própria natureza). Nem aí para a eventual estranheza dos passageiros diante das interjeições que emitia ao alterar seu inexistente foco de um alvo para outro. Pensou que poderia acostumar-se com aquela nova maneira de enxergar o mundo e as coisas, ainda tinha o olho direito, pois não? Mas caiu em si quando ocorreu-lhe: e se o outro também falhar, agora?! E se tiver que passar o resto dos seus dias enxergando a vida dançar à sua frente sem distinguir quem ou o que dança e porque dança essa dança? Meio que lamentou por imaginar-se interrompido, incapaz de prosseguir... De prosseguir o que, se mal tivera inicio um novo modo a ver o mundo? Um ponto de vista exclusivo, afinal acabara de penetrar um universo paralelo: tudo que precisava agora era encontrar as palavras certas para descrevê-lo. Mas e se fosse irreversível, ahn? Bem, neste caso teria vivido uma manhã espetacular.

A oftalmo virou, mexeu e num gesto de enfado, concluiu: - Nada. Nada de errado com seu olho, tudo normal. E diante do paciente decepcionado, emendou: - Talvez fosse melhor procurar um clínico. Pode ter acontecido algo neurológico... não sei. Doze horas depois, com a visão restaurada e com o resultado da tomografia gravada em disco (onde chegamos, que mais nos reserva o futuro?), nada constava, nenhuma anormalidade, nenhuma hemorragia, nenhum coagulo, nenhuma veia rompida, nadica de nada. O clínico, pausada e gentilmente, discorreu sobre a possibilidade de ter ocorrido um AIT e explicou detalhadamente o que venha a ser esta sigla estrambólica. Receitou uma droga devoradora de gordura arterial, fez um encaminhamento ao cardio e solicitou observância de cuidados com relação à pressão. Tks!

Nunca foi do tipo que nutrisse muita simpatia por médicos, principalmente àqueles que comentam, em voz alta e grosseira, as prescrições e procedimentos dos colegas. Vejam só que recepção! Aquilo o fez ficar com os dois pés bem atrás ao ver-se sentado à frente daquela senhora de volumosas bochechas, voz sumida e com aparência de não cultivar qualquer senso de humor. É que, dos médicos, espera-se fala mansa e sorriso largo (médico ranzinza só o House, mas ele pode, o cara é bom e agora que encontrou o amor da vida dele, está melhor ainda – semana passada ele invocou de curar uma escritora e, para não ficar sem a continuação da aventura de um herói adolescente que curtia, inventa uma lorota que faz com que ela autorize uma operação. Quando a mulher recupera-se, fica puto ao saber que não vai haver continuação da história e que agora ela vai dedicar-se a histórias para adultos. Não tendo como voltar atrás, não vê saída senão marcar mais um ponto no doce coração da doutora Cuddy). Como confiar em alguém que não demonstre inquietação, não se rale todo por nós, que entregamos, por necessidade, nosso corpo às suas apalpações? Aprendemos desde cedo a não dar muito crédito a quem nos diga que isto é assim ou assado. O “eu penso” ou “na minha opinião” ou alguma mentirinha saborosa só pra não nos deixar cair no desengano, soa muito mais agradável do que a empáfia de isto é pau e aquilo é pedra, mesmo que isto seja pau e aquilo pedra.

A cardiologista anotou, anotou e anotou e sem ao menos dirigir-lhe o olhar, ao fim da consulta, apresentou-lhe uma lista de procedimentos a serem rigorosamente seguidos pelos suspeitos de hipertensão e passou-lhe uma receita onde cravara o nome de uma droga cascuda que mais lembrava a alcunha dalgum sacerdote asteca, daqueles bem caxias. Não contendo o pequeno grilo que insiste nestas horas mostrar suas estridentes patinhas, questionou se não havia genérico (tudo bem, lembra o Serra mas, ninguém é perfeito). A sisuda discípula do compassivo Hipócrates levantou as sobrancelhas, ensaiou um muxoxo como se estivesse diante dalgum tabaréu e afiançou, do alto dos seus emoldurados diplomas, que aquele era um remédio de primeira linha (!), para ser tomado, dali em diante, pro resto da vida. Tinha ideia do custo? - É uma droga nova, um tanto cara, não nego mas, sua eficiência tem mostrado uma excelente relação custo benefício.

A pulga atrás da orelha não se deu por satisfeita: - Não há outros, mais baratos? (Lembrou-se dos enalapril's e captropil's da vida, distribuídos em centros de saúde, de grátis). Notou nela uma certa impaciência logo controlada pela lembrança de algum pacto (?): - Há sim, mas não produzem o efeito desejado, além do mais estão sendo retirados do mercado. E se dissesse que o laboratório possui um programa de fidelidade, continuou, um programa onde o senhor pode obter o medicamento com cinquenta por cento de desconto, estaria interessado? Hum, sei não... - Ligue para este 0800 e inscreva-se. Ah, não esqueça de passar-lhes meu nome. Após quarenta dias, retorne. Sei!

Quando, com o telefone em punho e ciente que fora mal informado sobre o valor do desconto, se viu obrigado a ler o número de registro da doutora, percebeu estupefato que os três últimos algarismos do cadastro dela no Conselho reproduzia fielmente o sinal da besta! No creo em brujas, pero que las hay, las hay!


2 comentários:

  1. Excelente, Paulo Laurindo! Pior de tudo é que sabemos de histórias assim, com médicos assim e pacientes... coitados!

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  2. Bom humor diante de uma situação vivida por milhares pessoas,gente simples ou não, pois as desgraças não escolhem aonde vão cair.Vi aqui narração do que já aconteceu com meu ex marido com uma diferença ele não tem o olho direito, foi-lhe arrançado quando com 3 anos de idade ficando só com o esquerdo que veio perdendo aos poucos até agora (66 anos) ver dançando em sua frente apenas vultos, como se estivesse sempre dentro de um quarto espelhado e cheio de vapor...Pois é meu rei, isto acontece de
    verdade e nem é preciso que as bruxas intervenham.
    Mas o que importa mesmo é que restando um olho sadio, podes ainda escrever, e andar só, ser independente e se dar ao luxo de ter sua solidão preservada...
    Uma postagem forte para quem tem amor ao que ver.
    Íris Pereira

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