O Louco, Tarot de Marselha
Porque aí, à beira?, questiona o viajante, ávido de ares. Trazemos os pés cansados, nós os sem tempo, responde o coro dos enraizados, dos que crescem como arbustos, de cujos gravetos são feitas as cercas que os encurrala e só enxergam a vastidão do espaço - vazio à sua volta.
Não há para onde ir, aqui ficamos no aconchego dos nossos lares. Distrai-nos os jogos que herdamos. Aqui quedamos industriosos, nós os que tememos a falta, a carência e a necessidade, zelosos da nossa segurança, inocentes do acaso, nós os previdentes. Para afugentar o desconhecido, erguemos totens nas sete entradas da nossa cidadela. Sete demônios nos protegem, com seus olhos de fogo, suas línguas viperinas e seus gestos de desprezo e ameaça. Apenas aquilo que é familiar nos conforta. Entre nós, apenas o conhecido prospera. Mas diga lá, ó viajante, donde vens, de quem sois filho, a qual família deves obediência, que trazes nesta bolsa à tiracolo e para onde vais?
Nasci longínquo, caminho por andar. Meus sonhos e meus ais cabem todos nesta bolsa. Mostrai. Compreenderiam? És modesto ou somos parvos? (Percorreu o viajante uma fração de partir). Há muito abolimos o desejo e o egoísmo, monstros singulares. Não existe entre nós tais desvios. Se trazes novidades, esquece, toda novidade é natimorta. Para nós nada permanece que não seja hábito. Cultivamos a verdade inquestionável de que tudo é efêmero e negociável. Nos tratamos por irmãos, pois conhecemos de cada um a origem e nos satisfaz chegar até o avô. Assim vivemos com o nosso deus e seu mandamento sagrado.
E entre eles havia um homem que era tido o melhor, o mais sábio e o mais bondoso. E todas as noites sentavam para ouvir de seus lábios balbucios e vislumbres recheados de engasgos, qual mariposas em torno da luz pálida dos candeeiros. E o velho homem, embora nutrisse dúvidas e carregasse em seu coração oceanos de tédio, tinha sido destinado a decorar-lhes o espírito com alguma arte.
Oh, minhas crianças, começava, meus frágeis recém-nascidos! Para vós apenas o peito da vossa mãe e os jogos com que vos alegrais! Vinde e brincai, pois não há porque nossos pés exaustos se ponham a caminho. Sabeis: lá fora habita o sofrimento, fadigas dolorosas e vaidades inumeráveis. Para onde quer que olhemos eis a boca escancarada do descaminho e as presas afiadas da perdição. Cuidai das vossas almas, velai por vossa diversão e a diversão dos seus, pois tudo o mais vos será dado. Perseverem nesta obediência inevitável, meus amados!
Não vos importeis senão com o vosso cotidiano, um dia de cada vez. Que é o amanhã senão cálculo, esfinge que nos devora com enigmas? Não sofrais com o que não vos foi dado conhecer, pois aquilo que não conhecerdes não vos será cobrado. Não questioneis, portanto, para que não tenhais que provar, pois a prova onera o provador. Não desejais aquilo que não vos foi destinado. Cada um morre sua própria morte, para glória eterna dos que nos antecederam. Só a proximidade nos importa. Só aquilo que podemos degustar com os nossos sentidos, conta para o dia que nos basta. Porque haveríamos de desejar o impossível, nós os possíveis, nós os somente?
Deixai vir a mim os ladrões e os parasitas. Eles são o fermento da terra. Deixai que se esgueirem nas sombras pois assim vigiam e controlam as trevas, por nós. Não vos incomodeis com os parasitas, eles enaltecem a nossa pujança e fertilidade. Mas a nenhum facilitais a entrada. Recaia sobre eles toda desconfiança, para que, por sua astúcia e malícia, alcancem o mérito da nossa indulgência. Porque só o homem de mérito prospera. Só o homem de mérito pode um dia alcançar a glória de figurar entre os ancestrais veneráveis. Sejais dignos desse merecimento, ó meus filhinhos!
Nada deixai à mostra, a não ser a vossa sabedoria e beleza. Que entre vós o feio não prospere. Tudo que destoar de vós, tudo que não vos for semelhante, seja doravante e para sempre considerado feio, meus sorridentes filhinhos! Contenham a vossa voluptuosidade, que o vosso tesouro permaneça guardado para o dia da grande glória, para o dia em que haverdes de entrar no reino celeste dos ancestrais. Não vos encheis de palavras, sejais comedidos no vosso conhecimento porque a nós basta o útil e o necessário para um dia de labuta. Crede nisto e dormirão tranquilos.
Deixai vir a mim também os perversos, pois eles terão a sua parte. Que seria do rebanho se o predador não encontrasse a presa? Cresceria desordenado e entregue a caprichos. Para tudo há um limite e um proposito, lembrai. Deus não escreve certo por linhas tortas! Deixai vir a mim os sórdidos porque deles é a sujeira e a imundice do mundo. Imundice e sujeira que repudiamos, nós os puros, os alvos e imaculados. Pois é digno deles esse trabalho: chafurdarem-se no pântano, entre maléficas e terríveis emanações, covil de numerosos e desconhecidos vermes. Deixai vir a mim os cínicos e hipócritas, deixai que ostentem as vestes do bom comportamento e da boa conduta e não vos peçais provas da sua fé, pois melhor um oportunista conhecido que um desconhecido sincero, vigiai!
Minhas crianças, é preciso que mantenhais a pedra do tropeço que vos impeça serem arrastados à lama e ao lodo. Sois fracos, nascerdes fracos e morrereis mais fracos ainda, contudo vossa força é retirada da certeza de que muitos gravetos formam um feixe. Experimentem partir um feixe, ó incautos! Não temais, filhos meus, que assim como trago esta imensa barba branca de incontáveis fios, cada um liame que me liga a vós, gravo minhas palavras em tábuas de ouro para que não ocorra sucumbirem ao abismo do esquecimento e do escárnio. Agora ides dormir tranquilos e saciados, que velarei, fiel e materno, o vosso sono. Passai a taramela em vossas portas e lacrais vossas janelas com o ferrolho da vossa fé inquebrantável. Que assim seja para todo o sempre!
E antes que dissessem amém o viajante já retornara à sua caminhada, sob a luz enigmática da lua.
Experimentarão alguma plenitude os protegidos cuja virtude depende do escárnio dos excluídos?? Há um bem que depende do mal para existir e ambos são da mesma natureza. O andarilho, talvez, além do bem e do mal não dependa da virtude hipócrita e viciosa.
ResponderExcluirTexto maravilhoso, Paulo.
Liberdade para ir e vir, para ficar ou ir...Só viver ele quer.
ResponderExcluirÍris Pereira
Bela parábola do velho sábio. Nela se contempla toda a gama variada do ser humano.
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