sábado, 2 de julho de 2011

A Nave Gloriosa

A Nau dos Insensatos, Albrecht Dürer, 1494




Oh! Acab, não é muito tarde,
mesmo hoje, o terceiro dia, para desistir.
Vê! Moby Dick não te procura.
És tu, tu, que loucamente o buscas”.

Herman Melville, Moby Dick



Sobre as ondas rebeldes, avança impávida, resoluta e fumegante. Repleta de coisas e gentes, almeja alcançar a outra margem em tempo recorde. Breve retornará abarrotada de mais coisas e mais gentes, todas necessárias, imprescindíveis.

Neste vai e vem de coisas e gentes resumia a missão da Gloriosa Nave, a maior embarcação já construída pela Frota, orgulho da Pátria Amada. Cuidada, venerada e mimada por uma tripulação hierarquicamente disciplinada, finamente instruída naquilo que, expurgados os erros, a humanidade já pensou e colocou em prática, desde a tenra aurora, em matéria de navegação.

O Capitão Smith... Ah, o Capitão Smith! Intrépido, visionário e insatisfeito (no bom sentido); pai, filho e irmão de Smith's; tio, primo e cunhado de muitos outros Smith's; forjado nos altos fornos da sabedoria, moldado na bigorna da experiência, possuía na alma rara aquela incomum e complexa matéria, encontrada apenas nos épicos, nos feitos gloriosos e galantes de antigos cavaleiros, bravos vigilantes da sagrada liberdade, caminhantes audazes e serenos prescrutadores do futuro, guiados por uma imorredoura chama que os impulsiona, a despeito de todo e de todos, para frente e para o alto, sempre e sempre, por todos séculos, amém.

Naquela manhã, o mar estava calmo. A altiva nave deslizava sobre o manto aquífero, animada por uma brisa invernal. De suas três chaminés, em volutas nuvens alvas, subia o fumo silencioso das suas fornalhas alimentadas, metódica e prontamente, por um exército de diligentes operários. O carvão que lhe servia de combustível, obediente ao mais rígido controle de qualidade, era produzido a partir de toros milimetricamente cortados de árvores escolhidas a dedo por exímios técnicos nas densas e verdejantes florestas dos quatro quadrantes desta orbe abençoada pela divina e sensata providência e processado de modo sustentável em indústrias tecnologicamente avançadas para os padrões da época, o que conferia àquela belonave uma velocidade superior aos 20 nós costumeiros, permitindo uma redução de 12 horas na travessia entre as duas margens do oceano, gerando uma economia da ordem de 30% na relação custo/benefício e, consequentemente, fazendo o mais sizudo dos acionistas rir à prega-solta e o mais humilde dos cidadãos revirar os olhos em sinal de vívida esperança no futuro que se avizinhava abundante e pleno de perspectivas altamente progressistas.

O Capitão, diante da amurada do convés superior, lugar de privilegiada visão, pontualmente, às 11:45 AM bebericou um cálice de licor de anis, servido numa exclusiva taça de cristal da Bohemia. Daqui a quinze minutos desceria ao grande salão para autorizar a uma legião de garçons, a hora do almoço. E como era do seu feitio todas as manhãs, naquela também consultou seu lindo relógio de ouro, cravejado de esmeraldas e rubis, presente outorgado pela Frota por ocasião da comemoração dos seus trinta e cinco anos de bons, relevantes e lucrativos serviços. O Capitão franziu o senho, tique lhe caía muito bem e acentuava ainda mais o seu olhar profundo e mais uma vez pode constatar, que tudo estava dentro do previsto, conforme o planejado, de acordo com os planos exaustivamente testados e aprovados. Até aquela atrevida gaivota, que acabara de pousar na lona limpíssima que recobria um escaler, demonstrava a certeza de que a vida seguia de acordo com o cronograma e aquele era o mais perfeito dos mundos.

O mais perfeito dos mundos até o imediato surgir, inoportuno e esbaforrido, para comunicar-lhe, num sussurro obsequioso, que o carvão havia acabado, que houve um erro de cálculo, que embarcaram menos que o necessário, que estavam em papos de aranha em plena metade do trajeto. 

Questionar os motivos de erro tão fatal, naquela altura dos acontecimentos, não passou pela cabeça do capitão, deixaria pra depois, para quando estivessem em terra e aí, ai daquele malfadado que cometera tal desatino. Tinha que tomar uma decisão urgente em face àquele desastre, não podia permitir atraso na entrega de toda aquela carga ou o pior, que perecesse tão preciosas mercadorias, afinal de contas da saúde delas dependia a credibilidade da Frota e daquele monumental salto da engenharia moderna, cujo lema era o de levar e trazer, tudo e todos, com absoluta segurança e estrita pontualidade.
- As bagagens! Atirem-nas às fornalhas. E, se não forem suficientes, atirem mesas, cadeiras, as divisórias dos camarotes, o assoalho do salão... tudo que for capaz de produzir energia.

Mais não conto porque não posso. Não existe nenhum testemunho que nos indique como terminou aquela viagem, visto que a nave nunca alcançou o seu destino. Possuo apenas especulações, umas verossímeis outras completamente estapafúrdias. Gente muito douta, reunidas em conselho, investigaram anos a fio e deram com os burros n'água. Não sobrou vestígio digno de qualquer escrutínio, por mais que equipes e mais equipes fossem enviadas para vasculhar o infindável e imprevisível oceano.

Mas de uma coisa posso ter alguma certeza: a partir do ponto em que o carvão acabou, a nave deve ter sido palco de um pandemônio. O Capitão Smith buscando a todo custo manter a disciplina e vendo sua autoridade esvair-se como água entre os dedos; passageiros em polvorosa, cada um lutando por seus pertences, uns exigindo mais direitos que outros; a tripulação entregue ao livre arbítrio, na tarefa insana de selecionar aquilo que ia ou não para os fornos. E quando tudo de consumível acaba, quando as próprias mercadorias são incineradas para gerar alguma energia de impulso, imagino que aí a vida, a vida tal como a conhecemos, deve ter perdido, inexoravelmente, o seu pretenso sentido.


4 comentários:

  1. Esse capitão me fez lembrar de outro famoso de famoso navio que foi famosamente afundado por um famoso iceberg que se derreteu no mar. O que fazer, quando o que vem é mais que o que se tem?

    ResponderExcluir
  2. Não vou me pronunciar...entro calada e saiu calada.
    Íris Pereira.

    ResponderExcluir
  3. A grande contradição do homem. Como a vida pode ser plena de sentido? Maravilhoso texto!!

    ResponderExcluir