sábado, 25 de junho de 2011

O Sonho de Maria

Criança Morta, Portinari, 1944


O delito maior do homem, é ter nascido
Calderón de la Barca, A Vida é Sonho.


Maria era uma boa menina. Obediente, trabalhadora, afável, risonha e virtuosa. Possuía todas as qualidade de uma moça em idade de casar. Nascera numa família humilde. O pai, infelizmente, morreu quando ainda era pequena. Perdeu a mãe aos treze, a desafortunada. A partir daí passou a viver na companhia de uma prima, casada com um comerciante de muidezas, muito mais velha que ela. O casal acolheu-a como filha, a filha que nunca tiveram. Davam-se bem, levavam uma vida regular, uma ou outra ameaça mas, sem atropelos.

Contudo, Maria notava um silencioso mal estar naquela casa. Raras eram as conversas. Sempre ocupados, tinham apenas uns poucos instantes à noite para trocarem meia duzia de palavras sobre o que fazer ou não fazer e era só. Carinhos, para dizer a verdade, nenhum, não havia necessidade. Estavam ali por obrigação, ponto final. Uma ou outra vizinha se aproximava para trocar dois dedos de prosa, vez por outra. Nada de muita intimidade dado o comportamento esquivo da prima. Maria entendeu o porque desta reserva, numa tarde, quando a prima soltou que não aguentava mais as mulheres do povoado, sempre em busca de um jeito de atazaná-la por não ter conseguido ainda ter um filho. Mas o que podia fazer?, não tivera a sorte das irmãs, parindo um filho por ano, a encher o mundo de bocas e braços. Sabia que não era normal, não podia ser, alguma coisa estava errada com ela, sim senhora. Mas Deus era testemunha e, sendo deus quem era, um dia iria agraciá-la com a dádiva de ser mãe. Fé e empenho não lhe faltavam. Desde antes de Maria chegar, já cumpria a promessa de, duas vezes por ano, fazer a peregrinação, de mais de sessenta quilometros, a pé, até a Capela do Salvador para assistir missa durante uma semana e alimentar os pobres da região. Um dia, deus faria a graça, a graça de ter uma esperança de verdade, já que no atual estado o que lhe vinha era só desgosto por ter nascido e nascido mulher. Maria agarrou-se à prima e chorou e rezou e pediu a deus que olhasse por elas, que fosse generoso e que não as esquecesse naquele fim de mundo como se esquece de um traste velho, sem serventia, porque elas podiam ser fracas de posses mas seus espiritos ansiavam pelo que é justo e justiça era tudo o que não tinham.

No silêncio do seu cubículo, à noite, orava com fervor, ansiava uma graça e, sobretudo, livramento. Exasperava imaginar-se com o mesma sina da prima. Pedia que, se viesse a conceber, que fosse um filho homem. Um menino homem forte o bastante para mudar aquele estado de coisas. Para si desejava poucas coisas, apenas o suficiente, o necessário para manter-se viva. Mas pensava em todas as mulheres que conhecia, no seu medo, nas suas inseguranças, na sua dependência infindável em relação aos maridos, impedidas de pensarem por si mesmas, de aprenderem um ofício além o de gerar e parir filhos para que se tornassem maridos e dessem prosseguimento do mundo tal como vinha sendo desde sempre. Ah, como desejava um milagre! Porque era assim, meu deus? Sussurava Maria nos intervalos entre um pai nosso e três aves marias. Então Maria sonhava, sonhava com o seu próprio filho. Um filho diferente, diferente de todos os filhos que conhecia. Um filho que fosse inteligente o bastante para encontrar o meio, a forma de fazer as coisas mudarem para melhor. Porque ela o ensinaria a ser menos mandão, menos ensimesmado, mais amoroso com as coisas que merecem amor neste mundo. Sonhava com o filho, homem feito, a criar sua própria família, uma família de muitas mulheres, todas sabidas na arte da escrita, da leitura, mulheres capazes de escolherem seus próprios maridos não em função das posses mas da beleza dos seus sonhos e da força que possuíam para realizá-los, mulheres que pudessem andar pelas ruas com os olhos no horizonte e não voltados para o chão. Seu filho e suas filhas, suas netas, Maria sonhava. E acordava com um sorriso como se seu sonho já tivesse se tornado realidade: sua fé tornara-se confiança, confiança de que seu filho viria, tão certo como a luz deste sol que nos alumia.

Chegado o tempo de peregrinação, a prima e o marido partiram e Maria dedicou-se de corpo e alma a uma semana de jejum e rezas em benefício da prima. O casal retornou e passados alguns dias ouviu-se gritos de vivas e louvor por todo o vilarejo. A prima engravidara. Novos cuidados foram adotados para que os noves meses fossem completados dentro da mais estrita recomendação do padre e das vizinhas que agora acorriam diuturnamente com conselhos e cuidados. Era um novo tempo, anunciava o futuro pai, um tempo de alegria, de bençãos e muita fartura.

A boa nova ecoou fundo no frágil peito de Maria. Aquilo foi uma resposta às suas preces. Durante as noites seguintes, redobrou o seu fervor. Uma noite, sentiu-se elevar-se até os céus, seu corpo sustentado por uma luz dulcissima e lá no alto ouviu uma voz, quase um eco ressoando dentro do seu corpo, como se seu corpo fosse uma caverna escura e alguém lá de dentro sussurrasse seu nome. Quis abrir os olhos mas desistiu, não queria desfazer o sonho. E mais uma vez ouviu, aquela voz de veludo, vinda de todos os lados, de todos os cantos do mundo e ao mesmo tempo de todos os seus orificios, ordenar-lhe que mantivesse a pureza do corpo e da alma pois nas suas entranhas seria gerada uma dádiva, dádiva cujo nome explodiu em sons de uma ladainha entoada por um coro de mil anjos no turbilhão da sua mente... Arrebatada, desmaiou.

Quando o galo anunciou a aurora, ainda atordoada pela visão, procurou compreender o que lhe passara. Estava certa de que algo havia alterado seu destino. Correu até a prima e contou-lhe o sonho. Teve o cuidado de evitar contar tudo, omitiu o final, justamente aquele instante de terror que sentiu pouco antes de desmaiar. Não queria alarmar o estado interessante da prima que, interrompendo a tarefa, mirou no fundo dos pequenos olhos de Maria e mencionou que também tivera um sonho na noite anterior. Que vira, como a via agora, o filho que carregava no ventre conversar com o filho porvindouro de Maria e por mais que apurasse os sentidos não conseguira atinar sobre o que conversavam. Passado um tempo viu que o semblante dos meninos ficaram turvos e eles começaram a chorar, um choro longo e dolorido. Maria disse: pare! Era o bastante. Compreendeu o que a fez desmaiar e correu tomada de pensamentos em direção ao nada. Não, não, não! Daria à luz a uma inocência destinada a passar por tudo aquilo? Não tinha, não se daria aquele direito, por mais que seu desejo lhe ardesse.

Maria casou-se. Encontrou um moço bom, um moço que sabia conversar e encontrar prazer em ouvir suas histórias. Histórias que nunca mais parou de escrever assim que aprendeu a rabiscar as primeiras letras que o velho mascate lhe ensinara entre uma visita e outra. Histórias de um menino nascido por obra e graça do desejo, cuja missão no mundo era a de espalhar o amor por todos os cantos da terra. Histórias de uma passagem estreita no alto de uma montanha, onde só se passa um por vez e bem devagar. Histórias de um lugar onde homens e mulheres, transformados, vivem guardados da tristeza, do sofrimento, do temor e da morte. Histórias tão populares quanto as bruxinhas de pano que exibia como crias sua.


3 comentários:

  1. Às vezes, a crença fervorosa num sonho o torna real.

    ResponderExcluir
  2. Legal seu modo de falar sobre a mãe do Jesus. Eu sou suspeita para falar sobre este assunto, portanto calo-me.
    Iris Pereira

    ResponderExcluir
  3. Prezado Paulo, confrade de signo e de Letras, agradeço sua leitura e comentário sobre meu conto "Estavam todos com uma única caneca" publicado ontem no site O Bule. Pesquiso Teopoética e estou mandando o link deste seu conto para minha orientadora conhecê-lo, pois semana passada ainda ela lançou um livro sobre a Maria Madalena das ficções e provavelmente nos interessaremos em estudar este seu conto. Quando quiser visitar meu blog Rascunhos do meio, esteja à vontade, será um prazer! Com estimas, Tony.

    ResponderExcluir