A Dança, 1909, H. Matisse
Certas histórias, disse Campbell, parecem recorrentes no espírito humano, independentes de lugar, da época e das circunstâncias. Dawkins fala dos memes, unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. Será que contamos uma única e mesma história, variando apenas os detalhes? Certa feita, um amigo mostrou-me um poema onde cantava a saga de um toureiro que acabou por descobrir ser ele próprio o touro. Alguns anos depois, casualmente, li um poema budista onde narra-se a história de um jovem que, em jornada de autoconhecimento, defronta-te com um touro que é... ele mesmo. A pergunta ficou-me: meu amigo nunca tendo lido o poema budista, como poderia ter chegado a mesma idéia?
O conto que vos apresento foi composto no começo de 2010 e só agora publicado. Alguns meses depois de tê-lo escrito, tive um choque ao lê-lo num blogue. Foi aí que me dei conta de que, se pensarmos bem, as ideias estão aí, são coletivas, pertencem à humanidade, é o nosso patrimônio comum. Qualquer que seja a teoria para explicar esta coincidência, seja ela psicanalítica ou religiosa, só nos coloca frente a este “repositório” que o velho Platão idealizou tão bem e Jung celebrizou em método. Pessoalmente penso que, ao invés de ideias originais existem, isto sim, modos originais de interpretação. Só assim posso explicar esta história que me surgiu sabe-se lá de onde.
Um dia um homem, desejoso de ausentar-se, disse ao filho: - Fica tu encarregado de cuidar dos meus negócios. Aja como sempre agi, para o teu bem.
O filho, um tanto atordoado, respondeu: - Vais partir assim, repentino? Quando voltas? Ficarei sozinho quanto tempo? Não sou como tu, preciso de companhia.
O pai pensou pensou e propôs: - Porque não te casas? Uma mulher é sempre boa companhia e poderá, com certeza, te ajudar.
E logo foi providenciado o casamento com uma jovem da região. Terminada a cerimonia, o pai chamou o filho para perto de si e falou: - Tens agora alguém com quem dividir tuas dúvidas. Sei que a tua esposa irá colaborar na administração dos negócios. Cuida apenas de mantê-la a par dos contratos para que nada fique sem a devida providência. Franqueie a ela todas as chaves da casa, a exceção de uma: a do meu quarto. Não permitas que ela entre lá em nenhuma hipótese. Esta ordem vale para ti também. Mantenha-o trancado até minha volta. Sê obediente, para o teu bem.
Feitas estas observações, despediu-se e partiu tranquilo.
Os dias, os meses e os anos passavam enquanto tudo era encaminhado, providenciado e despachado com presteza . Nada ficava fora do lugar. Os negócios do pai prosperavam. Era como se o próprio continuasse no comando. Incrível, comentavam os vizinhos, parceiros e clientes, que um filho seja tão obediente. E a esposa então? Sempre diligente, desprendida, interessada e justa. Uma união perfeita, uma família exemplar.
O que ninguém desconfiava era que entre quatro paredes aquele casal tão admirado sofria. Sofria pela ausência e sofria muito mais ainda pela restrição. O controle era mútuo. E severo. Ao ponto de dormirem sempre com um olho aberto. O medo da traição minava-lhes o espirito. Acima de tudo temiam serem cobertos pela vergonha, caso desobedecem a ordem. Mas dentro deles fervilhava certa magoa, certo rancor. Ora, se havia um porém era sinal de que não havia confiança e se não havia confiança não havia liberdade. Sentiam-se vigiados, controlados. Algumas explosões de impaciência fizeram-se notar.
Numa noite, em que todos descansavam a cabeça nos travesseiros, certos de terem sido justos na lida, a esposa não se conteve: - Qual o segredo do teu pai? O que ele mantém escondido naquele quarto? O esposo estremeceu: - Shh, não fales tão alto. As paredes podem ter ouvidos. Descanse, amanha temos muito o que fazer. A esposa, puxando as cobertas, acrescentou como vinha fazendo habitualmente nos últimos dias: - Não é justa esta restrição. O esposo virou para o lado e fingiu dormir. Os dois permaneceram naquele estado em que os pensamentos geram um turbilhão de imagens, todas reflexos, no fundo, da malícia que lhes nascera após tanto ruminarem sobre as verdadeiras intenções do patriarca.
Adormeceram quase no fim da madrugada e acordaram com o firme proposito de dar um basta naquele sofrimento. Nenhum comentou com o outro sua decisão. Deram um jeito de manterem-se fora da vista um do outro, cada um no seu canto, maquinando um jeito de invadir o quarto. Seria um momento sem partilha, haviam decidido.
Feita a última refeição do dia, o esposo inventou um passeio pelo jardim enquanto a cônjuge alegou forte dores de cabeça, razão suficiente para deitar-se mais cedo.
Era uma noite fria, nebulosa, vazia de ruídos, como se todas as coisas houvessem sido suprimidas do espaço e o tempo tivesse estagnado seu eterno fluir. Uma ou outra vela tremeluzia aqui e acolá fazendo dançar ilusões sombrias nas paredes e cortinas.
O esposo dera a volta na propriedade e, encontrando a escada devidamente escondida na base do muro lateral, cuidadosamente a posicionou à altura da janela do corredor superior e galgou os degraus sentindo a relutância das pernas que insistiam em tremer. Abriu silenciosamente a janela e espiou o interior. Sentindo-se um ladrão, experimentou uma sensação e deixou-se invadir por uma onda de satisfação. Estava senhor de si e gostava disto. Nada mais temia. Havia finalmente se conciliado com o verme que o habitava e roia. Sentiu-se íntegro. Caminhava agora com suas próprias pernas e nada o faria retroceder. A não ser... - Sim, senhor. Bela coisa pretendias. Era a esposa que emergia das sombras. - Depois de todos estes anos de dedicação é isto que mereço, ser excluída da verdade?
- Pretendias o mesmo ou não?
- Bem... aqui estamos e aí esta o quarto. Gira a chave!
O ar impregnado quase gritou quando viu-se libertado. Contudo, nem as dobradiças da porta nem as tábuas do assoalho rangeram. A escuridão silenciosa foi rompida pelo riscar de um fósforo. Um castiçal com três velas gastas jazia sobre uma cômoda. Tudo parecia em ordem, apenas uma camada de poeira recobria os móveis enquanto em alguns pontos das paredes o mofo exibia sua acinzentada assinatura. Um ardor acre invadiu-lhes as narinas. A esposa espirou. O esposo livrava-se de uma teia de aranha ao mesmo tempo em que pisoteava, sem querer, duas ou três baratas. O que estavam procurando? Era um quarto normal. Precisava de alguns reparos e uma boa faxina mas era tudo. O que esperavam? Algo bizarro, inacreditável, sobrenatural? - Veja aqui, em cima da escrivaninha. É um carta, endereçada a nós dois, gaguejou a esposa.
Não era uma carta, era um bilhete. Que foi lido praticamente num só folego, tão ávido de revelação estava o filho.
“Se estão lendo esta carta é sinal de que ainda não voltei. E se ainda não voltei e porque não voltarei jamais. Desculpem-me tê-los feitos viver todos estes anos aprisionados à minha determinação. Mas era preciso, para o bem dos negócios. Agora que tiveram a coragem de desafiar-me temo que muito pouco possa sobrar do meu legado. Morrerei crucificado por esta dúvida. O fato é que a partir de hoje vocês estão por sua própria conta e risco. Boa sorte!”
Por ande andastes que viestes tão inspirado em historias bem diferentes?
ResponderExcluirBem amena. Gostei.
Íris Pereira
"Ora, se havia um porém era sinal de que não havia confiança e se não havia confiança não havia liberdade."
ResponderExcluirParei pra pensar...
Abraçao
Paulo, parece-me que o tal do inconsciente coletivo, que dizem existir, justificaria essas coincidências.
ResponderExcluirSeu belo conto, segundo vejo, está na linha da temática bíblica de superar a interdição do conhecimento da famosa árvore da ciência. Adão e Eva são o casal de jovens aqui e o Criador é o pai do rapaz.
O que lhe parece?
Paulo,
ResponderExcluirA musa não nos engana. Ela nos permite misturas inéditas, porque ali inserimos nossa marca. Nosso fazer bem feito, consciente ou não, é o que importa. No teu texto, uma reverência profunda pela dobra das coisas, que aprisiona e com leveza e se liberta para ti. Mergulhando nela, beleza e sentimento fluem. Se é criação ou renovação, não importa. Vale a originalidade da mistura, como diria o cineasta Jorge Furtado.
Parabéns.