Segundo Espisódio
Oréade – Aqui estou na devastada Cítia. Neste árido e pedregoso campo pretendo encontrar a temível Fome. Eis que a vejo: cabelos hirsutos, olhos fundos, faces pálidas, lábios descarnados, boca coberta de poeira, pele distendida mostrando todos os ossos, arrancando a escassa erva com os dentes e garras. Assustadora visão! Terei de transmitir-lhe as ordens de Ceres à distância. Não me atrevo aproximar. Ó Desditosa! Ficais onde estás e ouça o que tenho a dizer. Apressa-te em ouvir o que a honrada Deméter quer que realizes. Há na abundante Tessália ignaro ser que necessita conhecer o poder da verdadeira justiça. Dirige-te até lá e envolva-o com tuas asas. Mal imenso praticou que teu abraço conduzirá suas entranhas ao mais completo inferno. Que ele jamais possa repetir semelhante agravo.
Fome – Por que me olhas com desprezo? Acaso acreditas que não sou digna?
Oréade – Não se trata de gostar. A criação deve ter tido razões para produzir também a feiúra.
Fome – Compreendo que por tua vontade, o mundo deveria conter apenas beleza?
Oréade – E porque não? Seria muito mais agradável.
Fome – Subjetividade juvenil! Não vês que existe o céu e a terra? O dentro e o fora? O alto e o baixo? Se eu não existisse por que os humanos trabalhariam? Eu sou a razão que move a existência. Sem mim o universo viveria na mais absoluta inação.
Oréade – Chega! Não disponho de tempo para discutir metafísica. Dize imediata se vais levar a termo as determinações.
Fome – Desde a muito vago por esta terra em rotinas absorvida. Desde tempo imemoriais espero uma missão que de fato corresponda à minha vocação. Voarei célere até onde esteja a criatura. Lá, penetrarei sem que a brisa perceba e realizarei o encargo que me solicita aquela que invejo e temo.
Oréade – Embora tenha me detido o menor tempo possível e mantido considerável distância, começo a sentir fome. Assim, depressa, devo regressar.
Flora e Fauna – Fuja, ó Linda! Não te deixes contaminar. Já ficaste por demais exposta a potentes fluídos. Concluíste a tarefa e nós te agradecemos. Enfrentaste com coragem o perigo. Mas agora vai para tua fecunda morada recuperar as forças.
Fome – Avisa tua deusa que presto este favor sem esperar recompensa senão o prazer de me mostrar inteira a quem assim me merece.
Flora e Fauna – Até aqui tudo se encaminha sem imprevisto. Erisíchton dorme. No rosto assassino o sorriso satisfeito. Parece tão inofensivo e puro. Vendo-o assim passa-nos que somos nós as feras. O mal só incita ao mal. E a cada instante novo sacrifício é exigido até que tudo se exaura. Mas pára! Devemos acompanhar a feiosa dar cumprimento à justiça.
Fome – Ah, Repulsiva Presa! Quão rígida é esta asquerosa consciência. Mas, por mais inquebrantável que seja este caráter, não será capaz de resistir à minha voraz ansiedade. Devo cumprir as ordens da cobiçável deusa, mesmo que não o faça por obediência. É preciso que ele saiba que não se despreza os deuses. Mas estanca subjetividade! Não vim aqui para tecer comentários acerca do direito mas dar prosseguimento àquilo que a reta conduta prescreve. Mesmo invadida por repugnante sentimento devo submeter-me a esta causa para que meu ato seja entendido como eficaz. Basta! Ele continua dormindo e em seus sonhos ansia por por alimentos movendo a mandíbula como se estivesse comendo. Agora devo apressar-me. Já executei minha missão. Devo deixar esta terra de fartura e voltar à minha costumeira desolação.
Flora e Fauna – Não há como fugir. A sentença está consumada. Ah, como foi horrível para os olhos assistirem medonho relacionamento. Mas não há desgraça que não seja produzida pela intolerância. Vai, Erisíchton, vai! Vai cumprir o teu destino. Podia ter sido melhor. Mas, fizeste tua escolha.
Homem – Sinto-me dominado por irresistível insaciedade orgânica. Uma cratera parece que se formou nas minhas vísceras. Arde fogo tórrido nos meus intestinos. Dói-me os músculos abdominais. Meus dentes rangem e minha saliva sobeja. Necessito ingerir sustento que provenha meu organismo de potência. Mas, que digo? Sou rico o suficiente para manter minha despensa fortalecida. Filha, depressa. Prepara as melhores iguarias de quaisquer espécie que seja produzida na terra, no ar e no mar. Estou sendo devorado pela fome.
Filha – Aqui tens o que já aprontei para teu desjejum.
Homem – Bendita sejas tu! Parece que adivinhaste minha miserável situação. Mais, preciso de mais.
Filha – Pai! Isto que preparei daria para o dia inteiro.
Homem – Não discuta. Preciso saciar este assombroso apetite. Vai, assa-me uma dúzia de tenras vitelas e todo peixe que encontrares no mercado.
Filha – Estranho hábito. Meu ganancioso pai ultrapassa seus limites.
Flora e Fauna – Longe de nós a perversidade e o sadismo. Mas a decadência apenas começou. E se bem conhecemos este homem, não partirá dele aceno que reverta esta situação. Já antevemos o caos para onde ele se encaminha. Não tem sido por falta de apelos e avisos, mas às vezes, o ser humano nem enxergando é capaz de acreditar. Mas deixemos por ora estas considerações. O tempo já deu muitas voltas. Erisíchton aí vem, por demais transtornado.
Continua...
Meio tonto...esperando o final. Abraço!
ResponderExcluirContinuo acompanhando os passos desta tragédia.
ResponderExcluirA liberdade tem seu preço. Bastar-se não é assim, no más. A fome é apenas uma das faces dessa autonomia libertadora. Do destravar-se paulatino dos mitos. O desejo desafiando o bom senso, o homem egocêntrico que toma forma. Belíssimo, Paulo.
ResponderExcluirQue agonia agoniada, meu amigo.
ResponderExcluirAcho que deveria escrever o livro, isto ainda vai ter muito que escrever. Obrigada pela visita.
Adoro.
Íris pereira
Fico meia impulsiva com continuações. Lerei do início Digo, do primeiro capítulo.
ResponderExcluirBoa tarde e obrigada pela visita.