domingo, 12 de dezembro de 2010

Outubro

Você já foi à Torre? Não? Então vá! Com esta fórmula os anciãos dão início ao ritual mágico de acesso à maturidade. É sabido que só os crentes, aqueles de verdadeira fé e devoção sincera, conseguem compreender as leis do céu e da terra. Para que floresçam, consigam constituir família e ganhem o pão de cada dia sem muito suor e/ou sangue derramados, fundamental é que, pelo menos uma vez na vida, cada jovem contemple e participe do mistério que é A Torre. Aqueles que recusam-se a empreender esta jornada, por deficiência, inépcia ou rebeldia (principalmente), condenados são a vagar de déu em déu, sem eira nem beira, pelas quebradas cavernosas do mundo, sem nunca terem usufruído da verdadeira felicidade.

Abdulah Ib Massud Al Hachid, não era míope mas, estava muito afim de enxergar adiante. Foi aí que lembrou-se das palavras do avô e ficou fissurado, beirado aos 50, numas de alcançar o reino das especulações sublimes e inefáveis, soterrado encontrava-se na sensaboria do cotidiano negócio de família de trazer e levar mercadorias, de um extremo a outro, às brenhas das planícies e planaltos alcançáveis por pés humanos, em troca de relativo conforto, pequenos prazeres e alguns trocados. E como era justa sua causa, numa bela tarde, decidiu que era chegado o momento de conhecer A Torre, certo de que nela encontraria todas as respostas às suas dúvidas e incertezas e, quem sabe, alguma ideia novinha em folha que, a bem da verdade, todo vivente tem direito e necessita para renovar o estoque de espertezas essenciais ao modesto bem viver. Deu uma passada d'olhos em alguns compêndios, consultou meia dúzia de sábios e sábias, examinou as entrelinhas e partiu com o coração repleto de esperanças.

A meio caminho pensou: se A Torre é tudo o que dizem não devo apresentar-me diante dela nestes trajes comezinhos. Preciso de digna indumentária. Envolveu-se num alvo lençol da cabeça aos pés e jurou, diante da pira que consumia aqueles costumes usuais e mundanos, mantê-lo limpo pelo tempo durasse a jornada e, talvez, além.

A um dia do seu objetivo, sentiu fome. E como não tinha tostão para bancar um repasto (Peraí, o sírio-libanês não tinha dinheiro? Tinha, respondo, mas para acentuar o caráter dramático da narrativa retiro qualquer vestígio de apego material que porventura possa existir na personagem), colheu algumas raízes, mastigou-as lenta e saborosamente enquanto seu organismo lhe repetia estridente que aquilo era uma loucura, que queria mesmo era uma suculenta feijoada e alguns goles de um bom e encorpado vinho do Porto (que mal havia nisto, ora bolas!). Imbuído de espírito altaneiro, sem exortações violentas nem práticas abjetas e repressivas dos desejos, conteve os arroubos da carne e engoliu secamente a massa a repetir em voz alta que a vontade de potência era o único e verdadeiro senhor e que o corpo, na qualidade de instância subalterna, devia conformar-se com o que a mente almeja e lucubra. Para confirmar definitivo quem mandava no pedaço, trinchou dois ou três gafanhotos que, desprovidos de alma, não arrotaram protestos contra aquela usurpação e partiu sem lenço nem documento ao encontro da luz.

Na manhã em que alcançou A Torre, estava um caco. Sacudiu a poeira, deu a volta por cima e encarou o monumento. Um falo extenso na direção do alto (dedo humano?), cercado de gente por todos os lados. Pedra sobre pedra, imponente, impávido, um colosso.

Parênteses: A Torre é habitada por um ruído intermitente que emana das suas pedras talhadas com uma precisão assustadora por mãos e ferramentas desconhecidas, num movimento de atrito incessante. Não se sabe qual matéria une, se é que une, aqueles blocos de tamanhos e formatos variados, encaixados uns aos outros sem padrão repetido. Uma colcha de retalhos, uma colagem, uma emaranhado de motivos justapostos desobedientes a qualquer simetria. Se fosse uma música, A Torre seria um arranjo de acordes independentes, intercalados sem qualquer relação aparente, sem qualquer nexo causal, sem nenhuma sequência que responda ou pergunte por e pela outra.

Ninguém até hoje ofereceu uma explicação plausível de modo aquele trem (desculpem-me o eufemismo) chegou até ali. Aliás esta é a primeira pergunta que todo neófito faz ao deparar-se com aquela enormidade. Quanto a isto existem versões, muitas, a gosto do freguês. Algumas palatáveis, outras verdadeiros exercícios de insanidade. Mas a maioria dá conta que só pode ter vindo do espaço exterior, dos confins do universo, talvez dalguma civilização com altíssimo grau de desenvoltura, infelizmente nem um pouco discernível por nós, minúsculos e efêmeros seres, habitantes desta rocha confinada num canto obscuro duma galáxia entre bilhões e bilhões de outras, nascidas e por nascer, ainda nos primeiros estágios da longa e infinita escala da evolução. Daí a infinidade de seitas, religiões, ciências, artes e ofícios que pululam em torno daquele construto que, conforme afirmam alguns, tem vida e vontade próprias, movendo-se a bel prazer, sempre a cerca de 10 centímetros do chão, nunca oscilando nem para a direita nem para esquerda, nem para a frente quanto mais para trás, extremos estes que parecem não afetá-la, o que só vem confirmar sua origem extraterrestre, visto que por aqui, neste vale de lágrimas, a característica básica seja o movimento espasmódico, pendular e oscilatório.

Esta aparente contradição é o mote inicial da serena contemplação. Digo aparente por conta de que, depois de um tempo deitado de papo pro ar (esta é a postura recomendada para se contemplar A Torre, sob pena de um torcicolo irreversível e incurável, daí o ditado: o uso do cachimbo entorta a boca!) chegamos à conclusão de que tudo é um imenso "ó". Compreende-se finalmente que l + l não é = a dois. Que, dependendo do ponto de vista, da abordagem metodológica que se utiliza, chega-se a resultados surpreendentes, inusitados até, quase sempre opostos e inconciliáveis entre si. Mas esta é a dialética da coisa, a magnificência d'A Torre: nunca oferecer-se completamente desnuda ao contemplante, mostrar-se sempre revestida de inúmeros atributos singulares e, se possível, originais. A Torre é A Torre mas, cada um é cada um, ou melhor, uma coisa é uma coisa e outra coisa é, seguramente, outra coisa (se é que me entendem) ou não.

Contemplar algo assim e encontrar uma única resposta não é tarefa para dois ou três dias. O que justifica a enormidade de gentes que habitam o entorno d'A Torre, cada um com o seu jeitinho de descolar algum para as despesas, seja através pequenos serviços, rápidos expedientes ou de grandes projetos multilaterais. Ao cabo de algum tempo, dada a propensa naturalidade com que os humanos decaem em direção ao conformismo (daí o ditado: em time que está ganhando não se mexe!), a maioria destas práticas transformam-se em atividades perenes e altamente lucrativas, gerando um ciclo vicioso ou virtuoso, a depender de quem está dentro ou fora do negócio. O fato é que A Torre atrai mais e mais gentes disposta a faturar algum, num fluxo e refluxo de atividades que fazem a alegria do mercado e o terror dos ecologistas. Estes, com toda razão, vociferam que o sentido original d'A Torre encontra-se definitivamente extinto e jamais recuperável nesta ou nas possíveis milhares de vida que ainda possamos ter pela frente, que A Torre (e aqui eles pisam no tomate) deveria ser tombada pelo patrimônio histórico e mantida longe das mãos asquerosas desta horda de predadores voluntários e involuntários. Assim, imersa em tantas e cruciais questões, sobrevive A Torre graças a um eficiente sistema de marquetingue muito bem administrado por uma seleta e secreta classe de zelosos heresiarcas, que fazem das tripas coração para impedir que esta ou aquela corrente venha a exercer predomínio sobre as demais, num gesto desesperado em prol a sobrevivência da espécie, de olho na colonização do quarto planeta do sistema solar por uma casta altamente selecionada de eugenistas dedicados e bactérias mutantes comandadas a distância. Modelo que vem sendo exportado, às vezes com o necessário uso da força mas não sem as imprescindíveis pompa e circunstância que cercam e abrilhantam este tipo de iniciativa, a todos os recantos visíveis e invisíveis deste vasto vasto mundo como prova inconteste da inventividade e do engenho humanos, como costuma repetir um dos sacerdotes encarregados de marcar a testa do peregrinos com as cinzas rituais que os alivia dos pecados passados e os fortalece para os futuros, ao cabo dos cinco dias de puro e indescritível êxtase.

De posse, não de uma mas, de muitas e inauditas conclusões, afora três ou quatro insaites bastante peculiares, Ib Hachid deu por encerrada sua iniciação e, como bom baiano, cabeça feita que era, parou na primeira banca de acarajé, agora com o olho interior devidamente focado nas coisas boas da vida e solicitou da volumosa senhora (autêntica representante das altas esferas da profícua e profunda espiritalidade), um abará entupido de vatapá e caruru, além duma generosa porção extra de camarão. Enquanto refestelava-se no meio fio que adornava a calçada da rua enladeirada, telefonou à sua neguinha, a escultural Jussara Mãos de Veludo, para ver como a bichinha estava lidando com aquele aperreio todo. Encontrou-a preocupadíssima, em vias de cometer alguma doidice, disse ela que não aguentava mais, que estava arriada, desconsolada com a ausência dele. Que negócio é esse de procurar essa tal de verdade interior em Salvador, Abdu?  Num gosta mais de mim não? Voz embargada, entre soluços sentidos, Juju confessou que desde a partida do homem da casa e turco predileto, chegou a considerar seriamente voltar ao antigo ofício de costureira déliveri, lavando e passando pra fora. Massud, com palavras assemelhadas à graças, homem novo que lhe nascera das entranhas agora revigoradas, tranquilizou-a e garantiu que havia mudado mas que continuava igual e entre hunhuns e hanhans quis saber se ela havia sentido a sua falta. Não! O que tu acha? Compreendeu, agora que era versado na linguagem invisível dos sentidos, que aquilo era dengo, que o que ela queria era cheiro, abraço apertado e chamego dobrado e disse Estou chegando! Que perfumasse a casa toda com essência com alecrim – Viu, minha pretinha?! - que já estava a caminho do lar, doce lar, de onde nunca, jamais, em tempo algum, deveria ter saído, sentenciou em uníssono seu ser agora finalmente encontrado. Hum!

Moral da história: Mais vale um abará no bucho que dois ou três grilos falantes.


4 comentários:

  1. À medida que ia lendo, estava me encaminhando justamente para o que a moral da história sintetiza. Até mesmo acho que esse abará estava apimentado demais.

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  2. Obrigada pelo conforto de suas palavras. As uvas no caso tem muitos guardiães.
    Você:A águia pode viver cerca de 80 anos. Ela depende, na maioria dos casos, somente dela para sobreviver todo esse tempo. Entre os 40 e 50 anos de idade a águia precisa passar por uma série de transformações, que à levarão ao sofrimento extremo para que possa sobreviver. Ela sobe até o alto das montanhas, onde se sente mais segura, e começa todo o processo para a renovação. Primeiro a águia começa a arrancar toda a sua pelagem, pena por pena, com seu próprio bico, pois as penas já estão velhas, no que resulta a perca de aerodinâmica. Passado um mês toda a sua pelagem já está nova para voar em perfeição. Em seguida começa a quebrar suas unhas, velhas demais para segurar suas presas; elas tiram até a raiz para nascerem unhas mais fortes, parecidas com as de sua primeira caçada. Após um mês de recuperação e crescimento das novas unhas, a águia ainda precisa passar pela parte mais difícil do processo que é a quebra de seu bico, muito velho e envergado que dificultam para pegar sua presa. Ela bate o seu bico por diversas vezes com todas suas forças restantes, já que ela está muito debilitada por todas as dificuldades passadas no processo de mudança, até que ele se quebre e caia. Somente após um mês é que o novo bico estará forte para voltar a ativa, e a águia pronta para enfrentar novamente todas as dificuldades deste mundo. Nós seres humanos somos iguais às águias. Entretanto, para vivermos muitos anos, precisamos reconhecer que não existe apenas uma mudança em nossas vidas, a mudança é algo constante. No começo toda mudança é difícil. Afeta toda a nossa estrutura montada em anos de trabalho / relacionamentos pessoais que deixam de existir por um determinado momento até que possamos nos estruturar novamente. É um recomeço. Nessas ocasiões é que sentimos de verdade quais os nossos pontos fortes e fracos. Nos derretemos em lágrimas por coisas que jamais pensamos que poderia acontecer e também sorrimos por inesperadas atitudes que se não tivéssemos mudado não aconteceriam. São nas mudanças que descobrimos as pessoas que nos ajudam a erguer nossas forças para a vitória ou aquelas que quando olhamos para o fundo do poço, vemos puxando a corda para cairmos. Apesar das dificuldades tenha coragem para mudar, de preferência para oportunidades e caminhos bons. Volte a ler aquele livro que você deixou para trás, os seus projetos de carreiras e de vida, suas metas, entre outros acontecimentos importantes em sua vida que foram deixados de lado. Nas mudanças é que aprendemos e crescemos na vida e no trabalho.
    Um gracioso beijo meu rei.

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  3. Nossa a ida a torre findou levando a caminhos tortuosos, comer gafanhotos? Só de imaginar dá um troço estranho...rs
    Quem sabe não eram alucinógenos?
    Ó meu caro, brincas com palavras nos fazendo desenhar em nossas mentes montanhas, planícies cheias de civilizações que ainda não compreendemos, é uma forma de nos fazer sonhar... Sigo-te com prazer!

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  4. Laurindo, pintou aí no pedaço uma cruza de Nietzsche com Jabor, mais Caetano Veloso que ninguém é de ferro. Ou não. Mas nem eles todos juntinhos tem a tua verve. Impagável. Valeu!

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