domingo, 19 de dezembro de 2010

Novembro

Sob impacto das marretas, veio abaixo a fachada do sobradinho nove da Vila Mosqueta. Construída pelo mestre pedreiro Francesco Mosca, às custas de muitos serões nas Indústrias Matarazzo, onde aportou, a pedido do próprio Conde Chiquinho, vindo de Nápoles, pouco antes da guerra. O velho Tchêco tinha admiração pelo mar e, especialmente, por navios. Determinado a construir as casas em formato de embarcação, sempre que podia, visitava demolições, ferros velhos, depósitos de materiais de construção a recolher raridades: pisos de madeira, vitrais de desenhos variados, banheiras vitorianas, mármores, ônix, granitos... e as distribuiu a bel prazer, movido por incansável imaginação, naquilo que foi o seu maior tributo à engenhosidade humana. Restaram toscas mas eram a expressão do seu fascínio, ele que se assemelhava a um argonauta de espírito. Quem visse uma delas, de fora, veria que o andar superior sofria um recuo em relação à linha da porta de entrada, criando a impressão de uma torre de comando. Mas o barato mesmo era o interior. Aproveitara os desníveis do terreno, cada comodo num patamar diferente. Da sala descia-se para o banheiro, subia-se para a cozinha e outra vez subia-se para um hall, à guisa de gabinete, sob imensa clarabóia, ao lado de uma escadinha que nos conduzia aos quartos de tetos rebaixados e inteiramente forrados por lambris de cerejeira, com boxes para colchão de casal num e dois de solteiros no outro. Os armários embutidos eram verdadeiras passagens secretas. A sensação que se tinha, ao percorrer aquelas mínimas distâncias, era de se penetrar num mundo mágico. Pensem num mundo de brinquedo e estarão bem próximos do sonho do Mosca. Dizia que as construira para uso dos descendentes, mas os filhos não gostavam nada daquelas habitações, quais casinhas de bonecas, e cuidaram de dar o fora. Só restou a caçula que brincou na de número um por toda uma vida. A vila fez enorme sucesso nos anos 70, 80, quando bandos de artistas disputavam, no tapa, o direito de morar num daqueles sobrados em busca de inspiração para obras primas que revolucionassem a cultura nacional. Espécie de homenagem tardia ao construtor que, finado, agradeceu. Giovana, sua menina, encarregou-se do legado a fazer questão, ela mesma, de escolher, como se escolhe um nobel, quem moraria na vila.

Julinho Takaoka não tinha lá muita coordenação motora devido uma entrevista relâmpago com agentes do Deops e consequente hospedagem forçada no presídio Tiradentes, por posse de livros proibidos, comoção de plateias, além de umas três ou quatro ligações de camaradagem e afeto com verborrágicos secundaristas do vetusto e assanhado Colégio de Aplicação. Após um intensivo programa de estudo da natureza humana e com uma disfunção muscular, decidiu que sua vingança seria metódica e artística. Juntou-se a um grupo de poetas e passou a disseminar haicais, sonetos, acrósticos, décimas, elegias, epigramas, acalantos, madrigais, odes e quadras pelos postes da cidade em intervenções rápidas e cercadas de estratégias e exaustivo planejamento. Uma vez por mês desfilavam por uma avenida, escolhida a dedo, ao som de uma veterana bandinha marcial carnavalesca, a declamarem uma lírica libertária, deveras pungente para os padrões provincianos da metrópole. Logo caiu nas graças da herdeira e não encontrou resistência à ideia de se instalar na nove. Plástico apessoado, poeta ilibado, trazia uma pequena fixação por peixes: lambaris, tilápias, bagres, garoupas, corvinas, badejos, dourados, trutas... Pintava-os, esculpia-os em gesso, pirografava-os, construía-os em madeira, metais, ferragens, com terra, areia, pedregulhos, misturava tudo em grandes aquarelas para ofertá-las ao deleite da septuagenária que os devorava com a alma a imaginar encomendados pelo pai direto do fundo dalgum oceano fabuloso, onde morava, agora que a lenda o havia substituído.

Mas o mar tem lá suas traições. O banco de coral que era a Vila Mosqueta, com sua fauna e flora variadíssima, repleta de modestas e exuberantes espécimes, ricas em animação e criatividade, viu-se ameaçada no dia em que Antonino Calatrava botou os olhos calejados no negócio de incorporações naquele arquipélago e esfregou as mãos... esfregou as mãos não, que faz dele um clichê, melhor direi: riu-se, ávido de possibilidades naquele mercado disputadíssimo. Giovana foi taxativa: disse não, que ali nada estava à venda, nem por todo o dinheiro do mundo, que ela estava vivendo seus últimos e felizes dias e que portanto, seo Antonino!, desse por encerrada aquela conversa, que nem com todo o ouro do mundo ele a faria acordar do sonho em que vivia mergulhada. Mas qual tubarão faminto que não cessa de nadar e sempre encontra um jeito de abocanhar sua presa, Calatrava soube, por uns e outros, que a velha não detinha a posse exclusiva daquele enclave, que ainda existia um irmão morando nas Perdizes, por sinal na pior, lá não muito bem das pernas, a assar e comer do carcomido negócio de armarinho e miudezas. Bastaria alguém acenar com a promessa de uma aposentadoria mais ou menos confortável que, o do meio, cederia sem pensar nem pestanejar. O empresário, inspirado pelo refrão do melancólico milagre, viu o espigão atingir o céu e hordas de casaizinhos, doentes por uma vaga no clube restrito da classe média, saltitarem à sua volta. Não demorou mexer dois ou três pauzinhos e, constatar exultante, que era só questão de tempo, a bucólica vila, mais dia menos dia, tornar-se-ia mais um dos inúmeros edifícios de apartamentos financiados pela Caixa. Nem precisou apelar para expedientes escusos, o tempo lhe pertencia, ou como costumava dizer: para aqueles que sabem o que querem o universo conspira a favor.

Giovana chamou Takaoka e narrou-lhe sua desdita: não tinha mais forças, seu irmão era um fraco, não puxara ao pai, era questão de tempo ver-se na obrigação de aceitar um acordo, o sonho havia terminado, lamentava não ter nascido homem para enfrentar Antonino. Avise a todos, o dia está próximo, não façam nada, principalmente não protestem! Que o velho Tchêco, onde quer que estivesse, estava mais que satisfeito, sua obra cumpriu uma finalidade. Takaoka ensaiou dizer não, que ia lutar, que ia conclamar as autoridades a tombarem o espaço como patrimônio cultural da cidade, que podia virar uma praça, um parque, um lugar onde namorados trocassem juras, crianças inventassem jogos, velhos encontrassem refúgio, que o trabalho do velho Mosca não poderia cair esquecido e coisa e tal, com aquela alma revolucionária que relutava em acreditar na inutilidade das ações humanas. Mas Giovana novamente disse não, que seu pai cometera um erro, um erro irreparável, nunca acreditara nos filhos, principalmente nela, mulher que era, nunca lhe dera atenção, ela que se sonhava artista, artista que nem ele, fora tratada como criança, sempre, como incapaz, que a deixou nas mãos dos irmãos, que nunca acreditou que ela fosse capaz de conduzir a própria vida, que compreendera finalmente que também ela falhara, a par de amá-lo com todas as suas forças, nunca o enfrentara, nunca dissera o que deveria ter sido dito, acatara suas decisões sem um repto e que agora era chegada a hora de também partir, de deixar pra lá, de seguir e não olhar mais para trás... Que não, não seria ela, um quase nada, a ficar no caminho do progresso... Que sabia, Calatrava tinha mais ambição que consciência, mais fome que tino, que cairia e arrastaria ao lodo os desejos dos ingênuos mas que no final tudo acabaria bem, na ultima hora o governo interviria, para não passar por padastro daria o ar da graça apenas para fazer-se notar como poder de por e dispor como bem entender... Esta parecia ser a lei do tempo, tempo do qual ela não mais fazia parte.

Quando a última parede foi derrubada, Takaoka tinha gasto uns cinco rolos de filme. Material para um livro de contos? Um longa, talvez. Não se sabe. Sabe-se que ele aceitou o convite de um primo distante e rico para editar uma revista de arte, cargo que lhe possibilitaria arcar com o aluguel do solitário e espaçoso apartamento para onde se mudara semanas depois daquela conversa com Giovana, agora devidamente alojada na casa de uma sobrinha que gentilmente cedera-lhe o quarto da empregada em troca de um reforço no orçamento mensal, enquanto não encontrasse outro lugar para onde ir.

O irrequieto Taka, ao lado de algumas telas onde treinara a arte dos mínimos traços, técnica sútil de ofertar simulada visão de eflúvios peixes em aquários invisíveis, viu, da pitangueira que adornava a extinta nove, tombar uma semente no chão estilhaçada. Cambaleante, levantou-se e a recolheu. Desajeitado, guardou-a na embalagem de um rolo fotográfico, ajeitou os quadros debaixo de cada braço e, tropeçando aqui e ali, ganhou o caminho da barulhenta e comprida rua quem sabe em busca de mares nunca antes navegados. 


4 comentários:

  1. Novembro com sua prosa poética refinada. Beleza de texto, Paulo Laurindo!

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  2. Hum! Sou muito carinhosa, muito pele, muito agarrar, ler o que se passa com o outro com um olhar,notar se estar com algum problema...etc.
    Acho que dizer te amo tem que ser assumir um compromisso muito além de uma promessa, é se entregar principalmente e não estou falando de romance, de novelas, filmes, não, estou falando do amar mesmo, juntar o bom e o ruim, passar juntos por tudo. Eu sou de querer a pessoa ali perto, por a cabeça em sua perna, seu ombro. Chorar e não ter vergonha de chorar.
    Eu amo você Laurindo e amo outros amigos, mas no que fazem vocês, entende? As vezes venho abrir o pc só pensando em ver você, ou as vezes é o dia de outro amigo. Me decepciono em não encontrá-lo, isto é um tipo de amor vurtual, mas não aquele amor compromissado, palavra firme que possa garantir ao outro: Eu te assumirei, acredite.
    Quero trocar umas idéias com você. irisaparencias@hotmail.com.
    Ha! Meu amor assusta as pessoa, mesmo esse amor sem compromisso, muitos dos meus amigos já caíram fora por puro medo, eu não entendo! Sou tão real assim?
    Estou te escrevendo isto que respondi pro escritor, em uma pergunta sobre o amor virtual,
    te repente quis também dizer pra você
    Eu te amo e sinto tua falta...
    Eu

    19 de dezembro de 2010 14:51


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  3. É Natal recomeço, esperança fé,
    renovação, felicidade e amor.
    Que teu caminhar pela vida seja
    sempre o rastro de luz.
    Feliz Natal!

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  4. Obrigada pelo conforto. Ver-lo em meu blog já me conforta e dar ânimo para não desistir.
    Tenha uma bela noite e outras tantas quantas maravilhosas.
    Um forte abraço sempre.
    Íris

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