Antigamente tudo era grande. As arvores batiam no oco do céu. Os seres humanos tinham dez metros de altura e as formigas eram do tamanho de elefantes. Tudo era tão grande que qualquer cidade era do tamanho do mundo.
Um belo dia, sem que ninguém sabia donde, surgiu um dragão se achando o maior e melhor dentre todos os animais. Como o mequetrefe era versado nas artes mágicas e por demais enfezado, tratou logo de reduzir o tamanho das coisas. E tudo foi ficando pequenino, pequenino. O mundo inteiro passou a caber na palma de uma mão.
O rei perguntou pro ministro que perguntou pro conselho que licitou um consultor para responder o que fazer diante daquela situação. Após exaustivas pesquisas e pareceres técnicos muito bem fundamentados e chancelados pela vetusta e honorável Sociedade das Místicas Tradições Que A Gente Não Está Nem Um Pouco a Fim de Perder Nem a Pau, a resposta veio de bate pronto em três vias e com firma reconhecida: o encantamento só seria quebrado quando alguém jogasse uma gota de orvalho no furo que o “você sabe quem” ostentava no centro da cabeça, bem no meio dos cornos. O documento não ofereceu resposta, contudo, ao crucial: quem seria o valente, quem se habilitaria a levar adiante tão ingente tarefa?
O Cospe Fogo, que bem podia ter todos os defeitos menos o de possuir ouvidos de mercador, bradou do alto da sua onipotência: Comigo ninguém pode. Sou o maior do mundo. E por ser o maior, mando em tudo. É o seguinte: todo dia é dia do meu aniversário, todo mundo vai ter que me dar presentes. Vacas, cabras, queijos e muita goiabada. Vão amontoando tudinho ali naquele caminhão enquanto tiro um cochilo.
O rei borrou-se todo só de encarar a feiura do danado. Pior que a feiura era o bafo, parecia uma onça arrotando essência de gambá. Será que não existia no reino sujeito nenhum capaz, gritou o imperador, alguém tinha que fazer alguma coisa, antes que a vaca fosse pro brejo!
O Leviatã, irritado com aquele falatório, vociferou: Que que tá resmungando aí, ô rei tampinha orelhas de abano? Olha aqui, seu menino, esse papo todo acendeu mais ainda o meu desejo, estou com uma vontade danada de casar. Tragam-me a princesa Eulália. Nossa! Foi um ai meu jesus, minha virgem nossa senhora nos ajude que não acabava mais. Se não entregarem a princesa em casamento, quando acordar acabo com tudo. Não vai ficar um fio de cabelo para contar a história. Está me ouvindo, rei nanico cara de penico?
O pânico tomou conta do povo, uns subindo pro morro outros correndo pro mato, preces foram enviadas aos céus, aos santos padroeiros, aos principados e potestades, todas pedindo, com urgência, um cavaleiro destemido, com muito ânimo e disposição para tirá-los daquela sinuca de bico. Ofertaram todo o ouro, urânio e silício, que tinham acumulado na última gincana de caça ao tesouro real, para se verem livres daquela alma penada.
No meio daquela zoada, um menino remelento chamou a atenção para uma poeirinha que estava a se formar no horizonte e não demorou muito para que todos ouvissem um pocotó pocotó se achegando à praça principal. O que era aquilo, se interrogaram, que era aquilo que vinha assestado num alazão aloprado, sobejado de miçangas, a beliscar as cordas de um saltério medieval, a entoar morbidezas românticas sob a forma de um animado anapesto?
Ah, era só um menestrel das oropas que vinha recitando uma ladainha amorosa salvacionista sobre um homem e uma mulher que não se sabiam mais gordos e que, por obra e graça do destino, foram colocados frente a frente e se apaixonaram perdida e mutuamente. Numa cruzada lírica em prol da salvação humana vinha de percorrer o mundo, sonho este de infância. Sentiu que sua busca havia chegado a termo, que sua jornada acabara ao, apear do cavalo, dar de cara com a princesa Eulália, um brinco de moça, uma flor naquele pântano de lamúrias. Pronto, todos os sinos dobraram, todos as cotovias cantaram, anjinhos barrocos rimaram, amor à primeira vista, foi lindo! Ela piscou pra ele que piscou pra ela e, como era costume, o moço chegou de mansinho e, perguntou, entre palpitações, se poderia namorá-la todos os dias de sua existência transmudada. Todo mundo disse pode, galego, pode! E foram fazer uma boquinha, que estava na hora do lanche, enquanto os dois ficaram ali, na praça, rodeando o jardim. Conversa vai, conversa vem, a princesa tratou logo de colocar as coisas nos eixos. Sem mais delongas, contou-lhe tudo, colocou-o a par da situação sem noves foras, falou do pretendente monstruoso, do seu apetite insaciável, da sua voracidade e do atrabiliário senso de humor da coisa. Que se ele gostasse mesmo dela, se a amasse de verdade, deveria arcar com a responsabilidade de acabar com toda aquela lambança, que o povo não aguentava mais viver submetido a tanto vexame e que, o pai dela, o rei, daria tudo que ele pedisse, todo o ouro, cobre e prata que tinha dentro do palácio seria dele se con-se-gui-sse, entendeu?, se conseguisse libertar o reino de tamanha afronta . E mais: no fim daquele rebuliço todo os dois se casariam e seriam felizes para sempre. Mas aí surgiu um porém, lembrou sincero o trovador, ele era apenas um poeta, nunca tinha se metido em lides violentas, era da paz e do amor, coisa muito em voga nos reinos desenvolvidos, por sinal. Que reparasse bem, não é que ele fosse um covarde, um mucufa boiota não mas, não seria melhor chamar alguém do corpo de bombeiro ou da polícia montada, este pessoal tem muito mais treinamento, benzinho! Ademais, onde é que acharia uma gota de orvalho no meio daquele deserto? A princesa disse, meu deus, agora percebo tudo, como pude ser tão cega, você não me ama mais, aliás nunca me amou, foi tudo fingimento da tua parte, os homens são todos iguais, que decepção, entreguei meu coração como se entrega a alma e recebo em troca desfeita? Tem nada não, a vida é assim mesmo, repleta de desilusões, estou acostumada, agora vá, vá viver a sua vida com outro bem. Não, disse ele, eu te amo, Eulália, amo sim, amo tanto que já tenho dois versos prontos pra recitar na festa do nosso noivado, minha passarinha das arabias! Não, acabou, finito, caput, esquecesse o assunto, iria ficar pra titia, entraria prum convento bem longe e passaria o resto dos dias a chorar as mágoas e a calejar as mãos numa roça de macaxeira e feijão. Eita vida besta, qual o sentido disto tudo? Ninguém me ama, ninguém me quer! Aturdido, choramingou o bardo, mas como é que eu vou colocar a tal gota de orvalho no furo que o dragão tem na cabeça, meu docinho de coco? A princesa disse, é simples, possuo alguns contatos no meio artístico e com um pouco de criatividade, podemos transformá-lo numa muriçoca, coisa, aliás, muito parecida com a tua natureza de cantor. O povo caiu na gargalhada e aquilo só não virou comédia porque, lembrou o rei, havia um trabalho muito sério a ser feito e já que não tem tu vai tu mesmo.
Moral da história: Cuidado com o que desejas, podes ganhar uma alcunha.
Rapaz, vai ter imaginação assim lá no buraquinho dos cornos do dragão...hahaha...Feliz Natal!
ResponderExcluirE essas princesas que ainda acreditam na lábia dos poetas!
ResponderExcluirO Zatonio tem razão, imaginação fascinante!
ResponderExcluirAh, claro: Feliz 2011! Que no ano que já bate à porta você continue com sua escrita criativa e refinada.
Um grande abraço, caro Paulo.
Ho! Meu rei para surpresa do Saint-Clair Melo, diga-lhe que aqui está uma princesa que acredita na lábia dos poetas, pois se nós deixarmos de crer acabariam as poesias...
ResponderExcluirMas eita meu rei estavas mesmo inspirado. Que coisa linda é ter essa imaginação.
Vim agradecer tua visita e encontro um texto tão a minha cara e o meu jeito de sonhadora.
Posso aproveitar teu espaço e pedir que indique meu blog para esses que sempre lehe visitam?
Um forte abraço e que 2011 estejamos juntinhos novamente e para sempre.
Íris Pereira
Caraca! "e já que não tem tu vai tu mesmo" é ótimo. Até mais. Boas festas!
ResponderExcluir