Penélope era charmosa: o suficiente para um magote de cabra de peía, de olho na sua (dela) poupança, virem, com argumentos carregados de sofismas, assediar, em nome da governabilidade, o domínio da próspera ilha de Ítaca. Passados dez anos da partida de Odisseu para as terras troianas, princípes decidiram acampar em bloco na pequena ilha a exigirem de Penélope o aceite do boato como fato: que o marido estava finado e que era chegada a hora de abrir caminho para a escolha de um novo rei do pedaço.
Sim, porque sem o consentimento de Penélope (eles eram temerários mas não loucos) ninguém se deitaria naquela cama construída às custas de muitas horas labutadas com afinco, dedicação e malandra sabedoria de Odisseu – o marido sumido no oco do mundo, aquele que ficou anos longe do lar e da sua mulher, senão amada como cantam os poetas mais tarde expulsos da República do Platão, amada pela convivência e conjunção de propósitos, mesmo porque naquela época não se falava de amizade entre homem e mulher pois que isto era exclusividade masculina.
Forçado pelas circunstâncias, Odisseu não teve alternativa senão perguntar à mulher: Perseverarás? E ela, conhecedora da alma dele e principalmente da própria, não hesitou em dizer: pelo tempo que durar tua ausência! Como podem observar, estes dois andavam na contramão da história. Penélope sabia que o marido tinha um dever a cumprir na defesa do orgulho e da honra, virtudes que eram também suas, visto viver num tempo em que palavra dada era promessa cumprida e Odisseu, homem forjado no pacto entre iguais, compromisso que molda um modo e um estilo de vida, que define conduta, produz justiça e gera sabedoria eterna. Defender um irmão, um co-pactuado, era mais que uma simples reparação do mal infringido, era manter a palavra empenhada, afinal um homem sem palavra não alcançou ainda a condição humana.
Porisso os gregos partiram para o pau contra o povo de Ílion, menos pela traição daquela beldade chamada Helena, afinal sabiam que ela estava destinada desde tempos imemoriais a produzir as catrastrofes amorosas que produziu, formosa que era naquela sua beleza voluptuosa e desagregadora a que estamos sujeitos desde que a Natureza definiu o nosso modo de eternidade. Odisseu chegou ao ponto de indicar que ninguém a desposasse, pois quem a desposasse seria infernizado pelo tempo que durasse aquela beleza, acabando por tornar-se um paranóico insuportávelmente dominador. Porém, Menelau aceitou a demanda e disse que botaria ordem na casa. Às vezes alguns humanos pensam estar à altura dos desafios, fazem alto conceito de si mesmos, e quando se pensam que não, as circunstâncias os transformam em insetos. Pobres seres, em geral levam o mundo pro beleléu.
Assim, os gregos se viram na obrigação de buscar reparo à desonra sofrida pelo fraco Menelau e submeteram-se ao comando mais fraco ainda do seu irmão Agamemmon. Daí, Odisseu, pensando na sua charmosa Penélope, teve que exercitar todo o seu gênio, servir-se de expedientes por vezes discutíveis, sempre buscando evitar o pior, até o monumental desfecho com o conhecido cavalo de madeira, que só depõe contra os troianos, que a despeito de serem também honrosos e honrados no combate e na vida, pecavam por uma mais acentuada superstição e por terem por maldita a jovem princesa Cassandra pelo simples fato de só falar a verdade. E como, nos negócios e na guerra, o que conta mesmo é o gênio realista, os gregos venceram. Porém, Odisseu, devido esta emulação com os deuses (sim, os deuses não podiam permitir que um mortal se igualasse a eles, a despeito de opiniões contrárias, mesmo entre os deuses), pagou um preço muito alto para conseguir manter a sua determinação de voltar para os braços da sua perseverante Penélope.
Num tempo em que ainda não havia correio, jornais, televisão nem internet, Penélope resistiu ao assédios dos pretendentes às custas de uma singelo ardil e de uma castidade espiritual digna de nota, enquanto Odisseu lutava para retornar ao lar, livrando-se de mil armadilhas do destino, da fúria de Poséidon, dos encantos de lindas e sábias mulheres fatais, sem poderem trocar uma palavrinha sequer, um bilhetinho, alguma dica do passo seguinte, um pombo correio com uma mensagem cifrada reforçando os laços... nada, só confiando mesmo um na palavra do outro, é muito! E olha que naquele tempo o oficiante não vaticinava: até que a morte os separe! É o tal negócio: quanto mais leis, mais frouxos e permissivos os seres.
Rei do pedaço penélope ou pedaço Ítaca? Ou as duas coisas?
ResponderExcluirE hoje tem de fato verdadeiramente amizade entre homens e mulheres? ( meu rei a nossa é virtual)
E a palavra de honra hoje mudou ? Ainda existe? Sei de uns poucos que sim...
Os que não se conhecem verdadeiramente e só vem seu próprio orgulho e se ferram e leva consigo os que os seguem...
Para onde mais volta o homem depois da derrota do cansaço? Para os braços daquele que vai ficar com o osso, no casso do Odisseu, restou a Penélope cumprir sua parte mesmo sem a Frase: "até que a morte os separe"
Hoje Existem penélopes e Odisseus?????????????
Acho que...sei lá eu não garanto nada!
Um abraço meu Rei
Íris Pereira
O mito famoso recontado com picardia brasileira e linguagem escorregadia, deliciosa. Vamos a julho, agora!
ResponderExcluirSumi dessas bandas (não por tanto tempo quanto Odisseu) e eis que, quando do meu retorno, me espera ninguém menos que Penélope. Considero-a uma personagem muito intrigante. Belíssima homenagem a ela esse seu texto, Paulo.
ResponderExcluirBeijos.
P.S.: Escrevi um poema tempos atrás,o qual tomo a liberdade de reproduzir por achar oportuno:
Versos esparsos (I)
Decidi bordar segredos no meu véu de noiva
Guirlandas pra(n)teadas, arabescos, incógnitas.
Tenho pensado muito em o que terá acontecido
à Penélope Artesã após o retorno de Ulisses.
A odisséia da espera, sendo contada debaixo de um pé de algaroba prum bando de menino curioso e que ainda gostam de ouvir histórias.
ResponderExcluirVelhinho, conheci Exu, terra de Luis Gonzaga, sertãozão. Lá ainda tem uns bons contadores de história.