domingo, 28 de novembro de 2010

Agosto

Futebol é uma caixinha de surpresas. Não faço idéia de quem cunhou a frase mas bem poderia ser o Nelson Rodrigues, lenda que é. Também nem sei se a autoria importa. O capixaba Zatonio Lahud lembra que no Brasil não importa o fato mas a sua versão, citando não sei quem, certamente um mineiro, seu vizinho.  O negócio é que compreendi o sentido da frase após assistir a partida final do campeonato conquistense de 1962, entre o Beabá Futebol Clube e a Associação Atlética Imortais do Alto Maron. Na minha tenra meninice vi logo que não era dotado de talento para o nobre esporte bretão mas isto não me impedia, e até hoje não impede, de apreciar o balé que é este corre corre de vinte marmanjos e/ou marmanjas dentro de quatro linhas em disputa pela posse da uma esfera de couro. É uma dança mítica, de acesso democrático. Futebol é o único esporte do mundo onde até perna de pau tem vez.

Mas não é disto que quero falar. Quero falar do imponderável que reina absoluto durante os noventa minutos de uma partida. Por mais que se tenha regras claras e definidas, juízes, tribunais de alta alçada, técnicos, preparadores físicos, psicólogos, administradores e hoje em dia a presença maciça da imprensa televisiva, cobrindo com suas lentes, cada lance, cada detalhe, sempre é possível que o acaso faça sua entrada e confirme ululante o óbvio assinalado pelo Rodrigues. E é isto que todos esperamos, que ansiamos, ao nos dirigirmos a um estádio, a uma quadra, a um terreno baldio para presenciarmos o imprevisível fazer das suas, juntando circunstâncias e criando a magia do encanto efêmero do momento para depois, dependendo da memória dos participantes, eternizar um instante.

Foi o que aconteceu naquela tarde de calor abrasador que fazia tremular o chão de terra vermelha do recém inaugurado estádio Lomanto Júnior, que deveria chamar-se Lourival Cairo mas que, por força de uma intervenção do destino, cruelmente manejado, foi preterido em nome dos interesses pessoais, também conhecido como governabilidade.

Bocão era o técnico do Beabá e vinha para a partida com o impedimento de não poder abrir a matraca durante o jogo: teria que permanecer calado, sob pena de expulsão sumária das hostes futebolística do sudoeste da Bahia e quiça do Brasil. Não ganhara o apelido atoa. Daquela cloaca estávamos acostumados a ouvir imprecações do arco-da-velha, xingamentos em dialetos inconcebíveis, ordens e contra ordens montadas em gestos pra lá de censuráveis. Na época iniciara-se um esforço sobre humano, para atrair às arquibancadas coloridas plateia feminina daí Bocão ter que submeter-se aos ditames do mercado ávido por novos e fieis consumidores. A contra gosto, e bota contra gosta nisto, avisou que ficaria quieto, que ninguém saberia que ele estava em campo.

Bocão conseguiria cumprir a palavra? Um descendente de calabrês no comando de uma esquadra acostumada a trabalhar sob pressão, seria contido? Foram questões como estas que acabaram por lotar as vinte mil cadeiras que estavam sob investigação do ministério público, suspeitas de licitação fraudulenta, a causar embaraço à administração do prefeito Arlindo Matos, primo em segundo grau da mulher do governador. Mas isto não vem ao caso, não tem qualquer apelo literário, onde já se viu autos enfadonhos redigidos por escrivães sonolentos dar algum pano pra manga e se aventurarem a solapar a dinâmica de um conto?

Os primeiros vinte minutos foram de um cerca lourenço sensaborão, os times se estudando, bola pra lá, bola pra cá, sem qualquer movimento que merecesse uma ola por parte da atenta plateia de olhos e ouvidos grudados na figura raquítica que insistia em permanecer parado à beira do campo, ora a esquerda, ora à direita, ora de banda, ora de lado, ora com as mãos nos bolsos das calças, ora com a mão do queixo, ora coçando um olho, ora o saco, impassível qual estátua muda e paralítica, absolutamente impessoal, a nos impressionar com aquela pose zen se soubéssemos naquela época o que significa isto.

O time do Beabá, corria com os olhos voltados para o técnico e nós, atônitos, tentávamos entender porque Bocão não dizia um “a” quanto menos um “b”, calado estava, calado permanecia. A galera vaticinou: acabou, o Beabá já era. Se a alma do time estava impedida de se expressar, o que fariam Piolho, Sapeca, Mano Chefe, Dentada, Zoinho, Nego Toco, Bagre, Alvinho, Ciço, Caçapa e Zé dos Quibas diante de Indalécio, Ascânio, Ramos, Romero, Alexandre, Estevão, Moisés, Túlio, Capistrano, Barbosa e Assis, confiantes e animados pela voz de barítono do seu primeiro e único técnico, o inveterado professor de latim e boticário estimado, doutor Adalfredo Quaresma?

O Beabá murchou e a nós sentimos o baque. Os Imortais, sabedores do ponto fraco do adversário decidiram partir para cima. E não deu outra, aos quarenta e dois do primeiro tempo a rede balançou com um gol duvidoso do Barbosa mas ficou por isto mesmo porque o juiz, sem o recurso do moderno video teipe, não teve como conferir se houvera mesmo o impedimento alegado pelos amarelos e preto do glorioso Beabá.

O público contorceu-se impaciente, metade quis desistir e correr pra casa a tempo de ouvir mais um capítulo da radionovela Jerônimo, o Herói do Sertão, afinal estavam todos ali para confirmarem o mote que dá ensejo a esta narrativa e à vista de uma imensa frustração, regada a dezenas de roletes de cana, tinham para si que a tão aguardada surpresa não estava se avizinhando, conjugados todos os fatos e circunstâncias daquela insípida etapa inicial.

Mas, e tem sempre um mas, o Beabá voltou revigorado. Partiu para cima dos Imortais, com gana de predador, mantendo e sufocando o adversário em seu próprio campo até os quarenta do segundo tempo quando num lance arquitetado e nascido nos pés de pato do Piolho, a bola cruzou a pequena área e foi cair amaciada na canela do Zé dos Quibas que ajeitou a menina em dois toques, driblou o monumental Moisés e escorregou de trivela por entre as pernas de Romero direto para a canhota do Nego Toco que, azoretado, deu um bico volumoso na bola mandando-a no canto esquerdo de Indalécio. Foi um delírio. Parecia que a pátria tinha finalmente conquistado a liberdade, tamanha a alegria que tomou conta da massa. O único que permaneceu impassível foi Bocão, braços cruzados estava, braços cruzados ficou.

Mas o melhor estava sendo gestado nas entranhas do destino, naquelas profundezas fáusticas inacessíveis a nós, os comuns dos mortais, que só sabemos quando e como aconteceu após o fato consumado desfilar diante das nossas retinas qual uma onda encrespada de um mar de perplexidade e espanto a transbordar em nossos peitos infanto juvenis aquela alegria que, embora nos saibamos capazes, dizemos nunca estarmos preparados.

Aos quarenta e um da segunda etapa, bola saída pelos Imortais, quando pensávamos que o Beabá iria buscar a lógica, cavar o desempate e sagrar-se campeão naquele ano inesquecível, sentimos o queixo nos cair pelo peito ao constatarmos incrédulos que, num gesto de recusa, Bocão tomou o rumo dos vestiários, cabeça baixa, passos lerdos, a olhar cabisbaixo e tristonho, vez ou outra para a meta adversária. Não houve uma alma sequer no estádio que não voltasse seus dois olhos na direção daquele pequeno homem batendo em retirada. Ó Nélson, ele entregou os pontos! Ele desistiu, senhoras e senhores! Incapaz de ajudar seus pupilos através do uso da sua arma mais poderosa, a palavra, o que se viu foi um comandante, outrora intrépido, agora um derrotado, um frango mole, um fraco, um trapo, um farrapo humano. Sentimos que naquela hora a letra morimbunda da lei havia vencido o Homem. Nos demos conta que o futuro estava seriamente comprometido, o gélido caractere da lei matara o espírito arrojado da arte e que daí em diante ser criativo seria tarefa reservada aos revolucionários. Tenho para mim, a sensação de que a subversão desenhou-se evidente e iminente. Em todo caso, a perplexidade tolheu qualquer iniciativa individual.

O que vimos foi o Beabá recuando, recuando, até ficar completamente encurralado em seu próprio espaço, debatendo-se por entre os passes vorazes dos Imortais. A derrota humilhante era o desfecho esperado. Lágrimas ameaçaram brotar daqueles quarenta mil olhos, triste é ver alguém entregar o jogo. Porém, antes que a ameaça se concretizasse, viu-se um rompante, uma saída, digna das melhores crônicas. Pela ponta esquerda, o desengonçado Bagre, seguindo de perto por Piolho e Mano Chefe, três raios de sol por entre as nuvens escuras das tempestades; três silvos no emaranhado das matas; três trombetas de Jericó; três anjos vingadores; três luas cheias no esturricado chão da caatinga a anunciarem as chuvas de março e o pipocar das primícias; três blocos carnavalescos a descerem as ladeiras de Olinda ou Salvador a estufarem a autoestima dos nossos fiéis e esperançosos corações torcedores. Os Imortais, haviam sido atraídos para uma armadilha mortal, desculpem o trocadilho, mas foi o que vi, com estes olhos que a terra um dia há de comer, caíram feito uns patinhos bêbados e, na posse da descoberta do engodo, não encontraram alternativa senão aguardarem o apito final para abraçarem aquele mestre da arte do fingimento, capaz de dar a volta por cima fazendo uso da mais simples técnica da imorredoura arte da mímica, tão esquecida nos nossos dias. Foi o gol mais silencioso da história. 

O danado é que quando a gente saca uma tática, quando ela passa a ser conhecida de todos, perde a validade e o efeito. É, futebol é uma caixinha de surpresas mesmo, bendito Nélson!

5 comentários:

  1. Deus do céu! Quanta confusão! Eu li e reli e continuo achando uma confusão danada. Vixe! Eita! Que eu estou ficando cada dia mais lenta de raciocínio para não dizer burra.
    Bem mas minha visita mesmo é para agradecer sua honrada visita. Me sinto tão bem.
    Um forte abraço meu rei.
    Iris Pereira

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  2. Bocão e sua sabedoria! Nem sempre tudo que sai da boca do homem presta. E Bocão colheu os frutos do silêncio.

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  3. Você espera eu dizer que sim? Sua cadeira em minha caçada, sua presença em minha vida, sua visita permanente, sempre, lugar no meu coração que é grande como o de mãe.
    Venha, venha sempre. Você me faz um bem danado.
    Beijos

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  4. Rapaz, já divido minha paixão pelo Botafogo com o Beabá, pode ter certeza. Só uma coisinha amigo: a frase " o futebol é uma caixinha de surpresas" não é do Nélson, é de Benjamim Wright, velho e já falecido comentarista esportivo carioca e pai do "ladrão" do Zé Roberto Wrigth, comentarista da Globo. Nada que manche a gloriosa vitória do Beabá...

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  5. Hahaha...a emenda ficou muito melhor que o soneto. Abraço!

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