Fazia muito tempo que não ia ao centro da cidade. De repente bate o olho em matéria do caderno ilustrado e decide assistir aquela missa embalada a canto gregoriano no Mosteiro do São Bento. Aproveitaria para desenferrujar as pernas, daria uma caminhada por aquelas ruas tão antigas quantos seus sonhos.
Desce do ônibus na Xavier de Toledo, logo tomado de assombro: o velho Mappin não está, tampouco a Ligth resistira, apenas o prédio das Indústrias Matarazzo continua italianamente imperial do outro lado do Viaduto do Chá; o velho Municipal se exibe garboso, embora sua fachada e ala nobre encontrem-se na uti das reformas.
A praça adiante (que? a estátua do Patriarca deslocada hesita - não sabe se olha para a Rua Direita ou na direção das Arcadas), é um vácuo, um buraco negro, pouso dos menos afortunados, desejosos de aconchego debaixo da monumental marquise metálica, encardidamente branca, donde podem desfrutar gratuítamente de espetáculos pretensamente populares.
Cadê o Ao Veado d' Ouro que ficava na esquina da Quitanda? (para os recém-chegados, falo de uma botica, ou melhor, farmácia, ou melhor, drogaria, onde hoje funciona um comércio de relógios de procedências duvidosas). Pois é, sumiu. É o modo festfudi! Entrou, comeu, cabou! Sentar, nem pensar. Cadê os bancos das praças? Não existem mais bancos nas praças desta cidade, os poucos que ainda resistem são antigente, de concreto, sem encosto... Levou-se a sério o lema: cidade que não pára. Nada pára nesta cidade, se parar passam por cima. Dá uma olhada na São Bento! São Paulo é aqui. A velha e a nova São Paulo, estão aqui. Desfigurada, ostenta descabriada, fachadas de lembranças vagas de uma promessa ainda acalentada pelas gente de todos os quadrantes deste vasto vasto mundo, gente que a elegeu e elege desta terra a promissão, gente igual a tantos outros que desfilam nesta hora pela São Bento... vê-se nos rostos, no olhar, no jeito de caminhar... aquele já se encheu de empáfia (ah, os novos ricos); o outro, humilde, ainda busca... Esconde tantas esperanças a São Bento...
Levado a pensar nas suas, pára no Largo do Café. Nome cheiroso, para um largo sem aromas. Camelôs, vivendo perigosamente, tentam ganhar um troco a troco de quinquilharia; bolivianos pequeninos e seu comércio tímido de roupas; uma dupla gaúcha, a caráter, na Quinze, quer comprar um palco para percorrer o mundo movidos a rancheiras e milongas; e a Guarda Civil - que de civil não tem nada - nem de longe lembra a outra, aquela que exercia o ofício nas entradas dos cinemas paulistanos de outrora envergando polainas, luvas e espadim... A praça é um ritual de passagem, a praça é um faroeste a lá David Cardoso, duelos diuturnos, desprovidos de graça, à sombra de alguns portais. Não há graça nestas praças, a ordem é passar, passe, passe logo que tem mais gente para passar.
Alguém pergunta: onde fica a Boa Vista? Não responde de imediato, tenta situar-se... boa vista... boa vista... a pessoa diz um deixa pra lá e parte adiante. A Boa Vista é a paralela, diz em voz alta, débil, assim como débil é o gesto esboçado na direção do vazio. Mas antes que se envolva em mesmice, outro lhe chega pelas costas e inquire: como faço para chegar à Praça da Sé? Aqui é mais rápido, peremptório: vá em frente, é o que diz, exultante. Ora, ora, nem dez minutos parara ali e já dois o solicitaram como eminente. Sente orgulho de ter dito certa vez conhecer a cidade como a palma da sua mão.
Larga o convento para lá. Iria amanhã, depois de amanhã, tanto faz... Colocou seu conhecimento a serviço das pessoas, arte simples esta de dizer como se faz para chegar em algum lugar... Não era conselho que costuma-se dar de graça, era necessidade, era urgência, o toque que separa o encontro do desencontro, a desdita da felicidade, a vida da morte.
Assumido o posto, no tempo que ali passou foram cinco indicações de ruas, umas tantas localizações de prédios públicos e privados, alguns itinerários de ônibus, sem contar a ajuda a uma octogenária com sacolas de compras até o ponto de ônibus e afastar uma bicicleta que insistia ir ao encontro de um jamaico relembrador do Seixas... Às cinco da tarde, decidido que já havia exercido um bom turno, voltou para casa satisfeito, algumas polegadas a mais de plenitude a transbordar-lhe na alma.
Foi aí que comunicou à mulher que finalmente havia encontrado um novo sentido para a sua vida: seria daí em diante e até os fins dos tempos uma Central Ambulante de Informações. Que tipo de informações, Dagô, meu anjo...? Pára de inventar histórias e vá buscar o leite, vai! Ora, Florzinha, mercado há, falta profissionais. E qual será a sigla desta tua empresa: CAI? Não brinca, mulher... Já estou vendo no cartão de visita: Dagoberto Paredes, presidente da CAI, ih ih, olha o vexame, Bertinho! Vexame é ficar em casa esperando godot, disse baixinho para não ser mal interpretado pela dadivosa. E não desistiu. Colocou para si a tarefa de sistematizar alguns preceitos, algumas dicas, que pudesse facilitar a vida de futuros aprendizes que porventura aparecesse, afinal fizera amizade com o rapaz de cabelo eriçado e voz de trombone a serviço das óticas e das lojas de celulares, ele também um entusiasta mas um tanto quanto desatento às preciosidades da vida.
E não é que o negócio prosperou! Com uma tropa pra mais de vinte mancebos espalhados pelo centro velho da cidade, além de duas ou três meninas que se encantaram com o uniforme financiado às expensas da sua aposentadoria (diga-se aqui, desenhado e confeccionado por Judite, exímia modista recém chegada do interior encontrada por ele em papos de aranha na Rua do Comércio em vias de desespero à procura da 25 de Março), Dagoberto procurou as autoridades com o firme propósito de dividir com eles o sucesso da iniciativa, dando-lhes a oportunidade de oficializá-la através da regulamentação do serviço e, a bem da verdade, ver se cavava algum para aquele magote de esquecidos que passaram a acompanhá-lo, mais pelo gosto das suas histórias, umas verídicas, outras nem tanto mas, todas deliciosamente ouvidas nos intervalos entre uma informação e outra a qualquer passante ávido de saber onde é que fica, por exemplo, uma estação de metrô.
Mais não conto, deixo à imaginação dos leitores o desfecho desta história, mesmo porque acabei de comprar um celular armado com gps.
"Alguma coisa acontece no meu coração..." Belo texto em que as reminiscências cruzam com o presente.
ResponderExcluirCaro, Paulo
ResponderExcluirEstou admirado e feliz por encontrar um belo espaço aqui! inteligência, sensibilidade e talento textual!
te sigo, caro!
Diga se de passagem, um astuto revoluvionário. abrçs
ResponderExcluirEsta São Paulo, sem dúvida, não tem a qualidade de outrora, não tem mais o charme das relações interpessoais sinceras, nem mesmo os bancos de praça que tanto causavam sensações deleitosas nos corações paulistanos mais esperançosos... Ora, não há nem mesmo os velhos conflitos de classe ou das histórias bem delineadas. Hoje a cidade é sem rosto; isto, cidade sem-rosto!
ResponderExcluirAh, mas que bom seja sem-rosto! Não fosse isto o que escreveríamos dela?
São Paulo superou mazelas, mas criou outras tantas. Nasci, cresci e hei de morrer nesta terra bandeirante. Amo-a, fico triste em ver tragédias por suas ruas, mas fico feliz em perceber também a generosidade de seu povo - frios de comportamento, mas acolhedores de coração. Não, isto não é lugar comum; admitamos, paulistas são indiferentes, refinadamente grosseiros e vivemos na solidão das grandes multidões... Penso que a cidade poderia ser melhor, mas aí não seria São Paulo, esta gigante emaranhada da vida que engana e que corrompe e que maltrata.
São Paulo é minha, é tua Paulo, é de todos nós que escolhemos sofrer nela. Conduz, querida cidade!
Desculpe, é que teu texto é tão bom que me fez pensar no desgraçado lugar onde moro; ô cidadezinha grande que nos faz falar tanto...
Um abraço.
Uma deliciosa crônica, que ao mesmo tempo nos faz refletir sobre esse mundão abarrotado de informações...e nunca fomos tão desinformados!
ResponderExcluirGosto de perceber os que vivem no centro. Por vezes até viver no centro.(por poucas vezes)
ResponderExcluirDagoberto encontrou uma boa solução pra uma função comtemplativa, e que só funciona no centro. "Se você está perdido procure um CAÍ perto de você" (o acento é pra ajudar no tempo do verbo, ou apenas oxitonar, como bom brasilês)
Pena ele ter comprado o gps. Vai perder um bucado de surpresas.
abraço saudoso
(tu é foda! eu me sacrifico nos prédios e tu repara nas nuvens!)