Miro... vamos chamá-lo assim? Valdomiro não, é feio. Miro. Reservado sem ser obscuro, simpático, familiar um tanto vagamente, tipo: de onde mesmo conheço este cara? E aposentado agora. Sessenta e oito anos. Um metro e oitenta e tantos de magreza a lá James Stuart, lembram do James Stuart?, aquele gringo afiado nas leis que ficou com fama de ter matado o vilão e tornou-se senador à custa da ajudinha que John Wayne ofereceu na forma de um tiro bem dado no fascínora asqueroso do Lee Marvin e que veio a sofrer vertigem junto na hora de salvar a Kim Novak? Pois é, Miro. Sujeito que a gente olhava assim e pensava, pô, esse cara sofreu tanta humilhação, levou tanta porrada mas se deu bem no final. Taí, este cara é um mocinho, me dá teu autografo. Ai me sóri, ai donti ispiqui portuguize, tchau e benção, sai de fininho, o passo lerdo, meio gingado, os olhos apertados, satisfeito com aquela efêmera glória, deixando para trás um queixo caído, uma dúvida e o coração palpitando, o que seria: epifania, revelação? Será isto que a gente procura, nestas nossas vidinhas sempre iguaizinhas, rotineiras, tediosas, será devido a isto que a gente faz das tripas coração para não acreditar que vai ser sempre assim, sem novidade, sem aventura e até morrer por conta disto por não aguentarmos a expectativa do e aí e agora, que vamos fazer?, essas coisas que ficam remoendo por dentro quando a vida chega ao esse tal ponto de irreversível perplexidade? E então, para onde agora? Ali já fui, lá também... seguir a rua principal, continuar seguindo a rua principal desta cidade onde a pessoas nunca se encontram, estão sempre fração de segundos defasados uns dos outros, embora sejam sempre as mesmas pessoas e mesma a vida dura, curtida, ressecada de quem ralou para chegar aos sessenta e oito, funileiro e artífice da forja, moldador de calhas e portões e panelas e bacias e que pensara apenas em pragmáticamente sustentar seis filhos, duas mulheres, uma ou outra bebedeira, que ninguém é de ferro e o corpo pede carinho em vez de marteladas a maior parte do tempo e agora, o que tinha: tempo, só tempo? Filhos crescidos... e as mulheres? Deixa pra lá: estão bem e a saudade mata, não quer morrer ainda, não pensa nisto, não quer pensar nisto, agora que tem todo o tempo para si e nenhuma preocupação a não ser organizar o dia e buscar aquele pequeno prazer, prazer pequenino, insignificante, diferente de todos os prazeres que buscara anteriormente porque, pensou Miro, sozinho no apartamento, sem ninguém para lhe solicitar o que quer que fosse, e ele disse, bom, agora é comigo, agora é só para mim, sem se sentir nem um pouco egoísta por encontrar-se diante da ilha desconhecida, qual velho cauboi solitário da sua velha infância passando agora diante de seus olhos azuis e cintilantes, ainda cintilantes, enquanto imaginava cartas para Mary Pepper, ah Mary Pepper, sua gringazinha morena, redondinha como uma joaninha... Mary Pepper, que um dia conhecera e nunca mais vira... Mary Pepper, Mary Pepper... lembra a novela no rádio que ouvíamos juntos? Jerônimo, O Herói do Sertão? Eu era o Jerônimo e tu a Aninha, lembra? Quantos anos tínhamos? Isto não importa Mary mais. Se tivesse seguido contigo estaria agora lembrando daquela noite de chuva, eu com a cabeça no teu colo e tu fazendo espirais com os fios dos meus cabelos?, lá onde o vento faz a curva, lá que não existe mais, lá onde tu estás Mary Pepper... Mary Pepper, minha pequena, se fosse um pioneiro Miro diria. Que desproposito. Qual proposito tem um cauboi a não ser viver em busca de proposito e acabar deixando tudo para trás. Miro, penso, mastigava isto enquanto andava pela rua principal a perambular os olhos pelas vitrines na esperança de encontrar algo pequeno, ínfimo, algo nunca notado antes, que só ele veria porque seus olhos azuis protegidos pelas pálpebras apertadas continuavam buscando sem saber bem o que seria mas não desistia e olhava enquanto passeava as vitrines, nesta ou naquela rua, shopping até ia, vez ou outra viajara para outra cidade para buscar outras ruas com outras vitrines, pensou em dar a volta ao mundo, por cidades do mundo, não todas, era impossível, impraticável, mas algumas e talvez quem sabe encontrasse aquilo que sem pestanejar saberia quando visse, aquele algo que seria como o sorriso daquela pequena que um dia feito chuva passou e deixou um cheiro bom de terra molhada na vida de gente, assim, um perfume de flores de algum jardim suspenso em plena primavera qual aquele em que se sentira naquela noite em que ficaram ali no silêncio naquela casa no fim da rua, ouvindo aquela novela, ligados no rádio e no outro, aquilo fora alguma coisa... Ah, Mary Pepper, não era isto que eu queria te dizer mas, vá lá, fica o dito pelo não dito e pronto, fiquei confuso, embaraçado e isto não é legal, afinal nós nunca resolvemos, esquecemos de perguntar, a gente nem lembrou de dizer isto um ao outro porque talvez não tivesse a menor importância, que importância tinha isto naquele tempo, naquela hora, hein? Bem, eu tenho que terminar, você sabe, colocar um ponto final, essas coisas, você sabe mas, eu só queria ficar ali, um pouco mais, ali, mudos, sentados, você e eu, Mary Pepper, minha pequena joaninha mas olha, não vá ficar vermelha nem faça aquela carinha que o gesto me amolece você sabe mas, preciso, tenho que perguntar, mesmo depois de todo este tempo, tenho que perguntar, me conta Mary Pepper: de quem gostavas mais, do John ou do James?
Esse texto, a um tempo denso e leve, me fez voltar aos quinze anos, quando, pela primeira vez no Rio de Janeiro, fui assistir a "O homem que matou o facínora". E me lembro muito bem de quase todo o filme.
ResponderExcluirParabéns pelo texto!