domingo, 23 de maio de 2010

Rito de Passagem

Não, não quero mais a lírica pueril, comedida, pão com manteiga, média café e leite. Cansei dessa temática auto exilada em labirintos habitados de equivocados fantasmas, da canção de alcova, do umbigo da amada em lençóis de nuvens esculpidas, do rococó da palavra, da superficialidade profunda, do espírito à vau, do par alma gêmea e nunca acertado por pura crueldade do destino, do embuste consentido e insensado por retórica passada, passadismo xinfrim, perfumado com melancolia pretérita e imperfeita... Cansei da saudade parnasiana, do arcadismo banal sem vivência das horas, de ficar à deriva no romantismo piegas de corações traspassados... Cansei dos eflúvios góticos - convite perpétuo ao suícidio moral - regadas a doses maciças de vodka com fanta, velas e sustos eletrizados de mágoa... Cansei dos enrustidos sonetos, das odes miolo de pote, dos chistes espirituosos e venais, das rimas e métricas engessadas na forma e sem qualquer conteúdo senão a consagração da forma... Cansei do gerúndio, dessa pegajosa corrente do aqui e agora que nos deixa sem rumo nesse círculo vicioso... Cansei do namorico no portão, pais vigiando na sala, beijo de bico, toque de mão, sexo pudico, luz apagada, extâses místicos e hecatombes ovacionais em nome de deuses mortíços e cansados... Cansei deste jogo de esconde esconde nos pomares carregados de ilusões desbotadas e insonsas, de corpos intangíveis, virtuais, avatares sem nexo, do chove não molha dos salões assépticos e etiquetados de cortes lacrimosas e esquálidas, redutos de intrigas e pragas... Cansei destas vaidades cheias de não me toques, da anorexia das meninas, da ambiquidade dos rapazes, do botox na cara, da alma lipoaspirada, da esmola abatida e da bondade safada... Cansei dessas idiossincráticas noves horas, de evitar ferir sucessitibilidades, de ser cordial, bom moço, polido, gentil, de defender a liberdade que é apenas a liberdade de outros me foderem... Cansei dessa paz, dessa paz de cemitérios, dos genocídios disfarçados, das limpezas étnicas, sexuais e culturais, da ameaça constante do fogo do inferno, da hipocrisia dos automóveis e do seu paradigma econômico industrial... Cansei do compadrio, do data venia, dos caros colegas, tapinhas nos ombros, da marmelada, do jeitinho, do deixa disso e da facada nas costas... Cansei da bunda da vizinha e dos esporros do marido diariamente castrado, dos diplomas emoldurados, do drama e do dilema sem fim e sem propósito destas fogueiras de almas, dos medalhões e suas teorias e decretos politicamente corretos, do faz de conta que os marqueteiros nos cartilham... Cansei do agasalho e do guarda-chuva ao menor sinal de garoa... Cansei do mesmo time, dos mesmo craques, das mesmas pedaladas e do mesmo zero a zero, de engolir sapo acreditando que era estrujão por não fazer a menor idéia do que seja caviar, das injustiças - por propositadamente nunca ter pensado sobre o que venha ser justiça - do cinismo que me assola quando penso que compadeço por desconhecer completamente o que verdadeiramente seja a verdade... Cansei dos quinze minutos de fama, de desejar aquilo que não é próprio, de fazer papel de bobo, cansei do pastelão, da torta na cara, e de sempre ouvir não...Cansei do atraso, da província, do tênis da moda, do celular blutuf, do manuseio do futuro em letras caixa alta neo-ionizadas de sentidos senso comumente mistificadas... Cansei dos meus dedos frágeis e caducos.

Quero inda agora o verbo no tempo perfeito, no mais que perfeito. Aceito um subjuntivo mas, um subjuntivo ávido de possibilidades, mesmo que quixotescas, mesmo que auroras de malucos beleza, contanto que sejam manhãs sorridentes de epifanicas luzes, mesmo que de fogos de artificios mas, que iluminem as contradições do mundo e exiba uma metafora plausível, próspera, próxima frase que evita a topada, que recria a vida, tal qual uma mycoplasma mycoides JVCI-syn, mesmo que seja... Quero todos os épicos esquecidos e lembrados e porvindouros para botar no chinelo todos os desvios e atalhos covardes e vis... Quero bruxas, gnomos, vinking e dragões mas bruxas, gnomos, vikings e dragões sintetizados em canais poéticos competentes... Quero uma tal mitologia que me oferte excelência não um arremedo de força, porque de força já estou até a tampa... Quero me mandar finalmente para o espaço sideral e me defrontar com as tais leis incertas, tão incertas quanto o novo amanhã pós humano e perecer com um imenso sorriso no rosto de pura satisfação por não ter dado ouvidos a este estranho que me habita como se fora senhor desse meu mundo.


3 comentários:

  1. Lindo desabafo... Lindo!
    Aplicável? espero que sim...

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  2. Sua crônica-conto (ou seu conto-crônica) causa estranhamento, mexe na arrumação das ideias, joga com todas as ambiguidades possíveis, cutuca lá dentro do leitor, mas é de uma beleza que dá até medo. Como se diz na minha terra: Ô trem bonito, sô!

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  3. Amigo, como diria o Totó: posso não ter entendido nada, mas, parodiando o Saint-Clair: Ô trem bonito, sô! E, medonhamente, tocante!

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